segunda-feira, agosto 12

O sonho da Gata Borralheira

Sonhei uma noite com a gata borralheira, como as crianças.

Tinha-me encontrado com ela numa cozinha muito escura e muito cheia de rodilhas e tachos. Como lá tinha ido ter é que eu ainda não sei.

A gata borralheira estava sentadinha no chão, muito triste, e fazia-me acenos. Sentei-me ao lado dela também. Começámos a conversar e ela contou-me a sua vida. Era de meter dó.

Quando falava saíam-lhe da boca uma espécie de pérolas miudinhas. Aquilo que toda a gente já sabe. Mas ela limpava- as logo com o lenço porque era muito acanhada.


Assim estávamos as duas, muito bem entretidas, quando soam perto umas patalonadas medonhas. A casa até parecia vir abaixo com elas.

Isto que é? digo eu para a rapariga.

A minha madrasta! respondeu-me ela aflita, e fica sem pinta de sangue.

A madrasta aparece-nos logo entre portas.

Que é que tens estado a fazer, minha joia? Mas o seu modo era de troça.

Eu, nada... responde-lhe a gata borralheira. Lavei a loiça.

E a roca, que é da roca? brada-lhe a madrasta.

Está ali.

Está então ali, minha joia, a fazer o quê? Parada, pois.

Era eu que a tinha na mão. Queria ver se também sabia fiar, disse, cá do meu lado.

Ai, queria, minha lindeza? Quem é esta? grita a criatura de repente para a enteada, com uma voz de arrepiar.

A rapariga, coitadinha, nem piava; fui eu que lhe respondi:

Sou a amiga dela, e então?

A amiga? Ainda agora mais essa! Que veio você cá fazer?

Ajudá-la.

Ah! ah! ah! Já meu moço quer seu moço. Roda já daqui para fora!

Mas eu não fiz caso.

Vai ela e põe-se à procura de uma acha para me atirar com ela. Nisto eu lobrigo a cara mais feia deste mundo a espreitar por uma greta da porta. Era a irmã da gata borralheira, como toda a gente sabe. Com um sinal peludo na testa, muito vesga, os dentes saídos...

A mãe andava de cócoras à procura da tal acha, mas nunca parava de ralhar. Dizia cada palavrão!

E a gata borralheira com o susto metia outra vez na água os pratos já lavados e limpos. Eu só me vingava em rir.

Ó minha mãe, olhe que ela está-se a rir! — diz a feiazona lá da porta, com a sua voz fanhosa.

Ela a dizer isto e um grande carvão a saltar-lhe da mão. Sem me poder conter fiz um gesto para o ir apanhar mas senti logo um pontapé. A mãe dela com a acha alçada ameaçava-me:

Já daqui para fora, sua grande atrevida! E chegou-me a dar com ela na cabeça, mas não me fez doer.

Puxei então pela gata borralheira com toda a força que tinha e dei um encontrão à porta. Aquilo é que era fugir! E a mulher má sempre aos gritos, a ralhar, a ralhar... em toda a parte se ouvia.

A pobre gata borralheira só me dizia que não fizesse caso. Corríamos tanto! Com certeza ainda mais que o vento.

Onde fomos parar é que não sei, nem mesmo o que aconteceu depois à rapariga.

Irene Lisboa

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