Hoje o tempo não me enganou. Não se conhece uma aragem na tarde. O ar queima, como se fosse um bafo quente de lume e não ar simples de respirar, como se a tarde não quisesse já morrer e começasse aqui a hora do calor. Não há nuvens, há riscos brancos, muito finos, desfiados de nuvens. E o céu, daqui, parece fresco, parece água limpa de um açude. Penso: talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu mas em cima dele; talvez a gente veja as coisas ao contrário e a terra seja como um céu e quando a gente morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu. Um açude sem peixes, sem fundo, este céu. Nuvens, veios ténues. E o ar a arder por dentro, chamas quentes e abafadas na pele, invisíveis. Suspenso, como um homem cansado, ar. Há-de ser um instante em que não se veja um pardal, em que não se ouça senão o silêncio que fazem todas as coisas a observar-nos. Chegará. Hei-de o distinguir no horizonte. Tão bem quanto sei isto agora, sabia-o ontem quando entrei na venda do judas e pedi o primeiro copo e pedi o segundo e pedi o terceiro. Mais, sabia que por toda a planície se calarão as cigarras e os grilos. De encontro ao céu, as oliveiras e os sobreiros hão-de parar os ramos mais finos; num momento, hão-de tornar-se pedra.
José Luís Peixoto, "Nenhum olhar"
Nenhum comentário:
Postar um comentário