terça-feira, agosto 6

Paris é para parisienses

 


(Terra: para a maioria dos filhos do céu, a terra é uma fantasia dos velhos. Para os velhos é um sonho no qual eles próprios já não acreditam)

Aimée vivia no céu – mas não vivia o céu. Não, como nós, nas aldeias, que nascemos e crescemos açoitados pelo vento, pela chuva e pelo sol, ou cobertos, à noite, por um profundo e cintilante manto de estrelas. Os parisienses, na sua maioria, nunca caminharam entre as nuvens. No máximo estendem-se ao sol, nas ociosas varandas dos seus apartamentos de luxo, desfrutando da calmaria de um verão perpétuo. Alguns visitaram uma ou outra aldeia. Ouvi-os, nos cafés, vangloriarem-se dessas rápidas surtidas, como se fossem atos de bravura. Uns poucos viajaram durante dois ou três meses em balsas alugadas. Esses são os mais interessantes. Aliás, um dos melhores relatos de viagens que nós publicámos, em Luanda, traz a assinatura de um parisiense: Voando na Noite, de Patrick Maciel, um navegador solitário, cego, que visitou mais de duzentas aldeias e cerca de trinta grandes dirigíveis, vagueando numa minúscula balsa salva-vidas – a Montparnasse. Tenho este livro na minha biblioteca, na Maianga. Quis conhecer o autor, para lhe pedir um autógrafo, mas ele voltara a partir em mais uma das suas explorações. Patrick é um dos heróis de Aimée:

– Os meus pais são amigos dele. Cresci, ouvindo-o a falar do céu. Sonhava em partir sozinha, como ele, para descobrir outros mundos.

Aimée vivia com os pais e um irmão mais velho num apartamento situado no Oitavo Piso. O Oitavo Piso é o segundo mais luxuoso do Paris. Acima dele desdobram-se cinquenta habitações, ocupadas por famílias riquíssimas e poderosas. É ali, no Nono Piso, que se alonga o famoso Jardim de Luxemburgo, com uma alameda ornada de palmeiras e a réplica exata de um café, o Buvette des Marionnettes, que existiu na antiga Cidade-Luz. O Jardim de Luxemburgo é também famoso pelo enorme lago, no centro, com flamingos. Ao entardecer, os flamingos esvoaçam pelo jardim como elegantes milagres cor de rosa.

O pai de Aimée, Jean-Pierre Longuet, enriqueceu, na terra, a vender computadores. Hoje é o diretor de Informática e Comunicações do Paris, cargo importante, que ele exerce com zelo e competência. A mãe, uma senhora muito alta, de quem Aimée herdou o azul dos olhos e o coração inquieto, foi uma atriz de cinema muitíssimo popular em França. Hoje, dá aulas de ioga. Já Alain, o irmão de Aimée, partilha com o pai a paixão pela informática. Passa a maior parte do tempo a navegar na Internet e a inventar programas e jogos, os quais oferece, depois, a uma meia dúzia de amigos virtuais. Aimée mantém com o irmão uma relação tensa e intensa. Amam-se e odeiam-se. Tão depressa estão aos gritos um com o outro, como aos abraços e carinhos.

Não invejo a vida dos ricos. Sim, eles alimentam-se melhor do que nós. Podem esperar, a cada dia, uma refeição diferente. Não sofrem com o frio e nem enfrentam o terror das grandes tempestades. Em contrapartida padecem de um tédio infindo, o que se me afigura, a mim, a pior das condenações.

O Paris é famoso pelas grandes festas. Estive em algumas. Não achei nelas alegria, antes uma melancolia ruidosa e um sentimento geral de exaustão e ceticismo. Os jovens parisienses dos andares superiores são, quase todos, tão vazios e estéreis quanto um mar sem peixes. Aimée e, de uma outra maneira, o irmão, o esquivo Alain, escapam à regra. Ambos souberam aproveitar os privilégios de que dispunham. A minha amiga estudou astronomia e biologia marinha, leu Borges, Pessoa e Nabokov, praticou judo e aikido. Tive, aliás, a possibilidade de confirmar a habilidade dela no domínio das artes marciais. Uma noite em que eu não trabalhava, combinamos encontrar-nos num bar chamado Baudelaire. Cheguei, como sempre, demasiado cedo. Sentei-me à espera. Um rapaz muito magro aproximou-se de mim:

– Já deixam entrar imigrantes nesta espelunca?

Olhei-o, atônito. Nasci numa pequena aldeia, e sei que posso parecer às vezes um tanto simplório e ingênuo. Contudo, habituei-me desde cedo a enfrentar tempestades. Ergui-me e encarei o imbecil. Perguntei-lhe o nome. Ele hesitou. Voltou-se na direção de um grupo de garotos, muito emproados, que cochichavam entre si, e gritou:

– O parolo quer saber como me chamo.

Dominei a irritação, e voltei a sentar-me, decidido a ignorá-lo. Não tive sorte. O magricelas agarrou-me pela gola da camisa:

– Volta para a tua balsa. Paris é para os parisienses.

Atirei-o para longe (ele era muito leve) e os outros caíram-me em cima, aos socos e pontapés. Aimée surgiu segundos depois. Mergulhou na confusão com a mesma elegância com que saltava para a água, e em gestos precisos, sem esforço aparente, afastou o mais alto dos agressores, estendeu um segundo no chão, e, agarrando em mim, arrastou-me para a porta.

– Não te posso deixar sozinho. Arranjas logo problemas.

A partir dessa noite passei a ter mais cuidado com os lugares que frequentava. Passei também a sentir-me muito mais seguro na presença de Aimée. “Caímos sete vezes, e levantamo-nos oito”, disse-me uma vez. É um dos mandamentos do aikido. Ela aplica-o na vida. Quando tinha doze anos foi-lhe diagnosticada leucemia. Aimée enfrentou a doença com serenidade. Ignorou a consternação dos adultos e o horror das restantes crianças. Não permitiu que a rotina dos tratamentos, a soma de pequenos e grandes desconfortos, interferisse nos seus estudos e, menos ainda, lhe toldasse a luz. Os médicos acham que a rápida recuperação se deveu a essa alegria e determinação.

Recordo uma outra noite, em que fomos passear para o Jardim de Luxemburgo. Enfiei com gosto as mãos na terra úmida.

– Este cheiro. Nunca senti um cheiro assim. É maravilhoso.

Aimée troçou do meu entusiasmo. Abraçou-me. Os pais costumavam levá-los ao jardim, a ela e ao irmão, quando eram crianças. Gostavam que os filhos remexessem na terra. Pretendiam partilhar com eles a dor da perda. O resultado foi que Alain passou a sofrer de pesadelos. Sonhava que a família regressava a França, onde eram perseguidos por animais ferozes. A irmã, mais feliz, passou a comer terra às escondidas. Ela acredita ter sido esse vício extraordinário, mais do que os medicamentos ou o indestrutível otimismo, que a ajudou a vencer a doença.

José Eduardo Agualusa, "A Vida no Céu"

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