sábado, agosto 10

O Fundão

Naquele lugar, onde arrancaram pelas raízes as beladonas e amoras silvestres para abrir espaço para o Campo de Golfe Medallion City, havia, tempos atrás, um bairro inteiro. Ficava nas colinas acima da cidade no vale de Medallion e se estendia até o rio. Agora é chamado de subúrbio, mas quando os negros moravam lá era chamado de Fundão. Uma estrada, sombreada por faias, carvalhos, bordos e castanheiros, ligava o bairro ao vale. As faias já não existem mais, assim como as pereiras onde as crianças se sentavam e berravam em meio às flores para os pedestres. Recursos financeiros generosos foram destinados à demolição dos prédios simples e desbotados que se amontoam na estrada de Medallion até o campo de golfe. Vão derrubar o Salão de Bilhar Time and a Half, onde pés em sapatos marrons compridos outrora apontavam para baixo apoiados na barra das cadeiras. Uma bola de aço vai transformar em pó o Irene’s Palace of Cosmetology, onde as mulheres recostavam a cabeça sobre pias e tiravam um cochilo enquanto Irene fazia espuma de Nu Nile nos cabelos. Homens em roupas de trabalho cáqui vão tirar as ripas do Reba’s Grill, onde a dona cozinhava de touca de chef porque sem ela não se lembrar dos ingredientes.

Não sobrará nada do Fundão (a passarela que cruzava o rio já se foi), mas talvez seja uma boa, já que não era uma cidade, de qualquer forma: apenas um bairro onde nos dias sossegados as pessoas nas casas do vale escutavam às vezes cantoria, às vezes banjos, e, se um homem do vale por acaso tivesse negócios no alto dessas colinas — cobrando aluguéis ou pagamento de seguros —, talvez visse uma mulher negra de vestido florido dançando um pouco de cakewalk, um pouco de black bottom, fazendo um pouco de “bagunça” ao som das notas animadas de uma gaita. Seus pés descalços levantariam o pó de açafrão que caía nos macacões e sapatos antijoanetes do homem que inspirava e expirava música da gaita. Os negros a observando ririam e esfregariam os joelhos, e seria fácil que o homem do vale ouvisse as gargalhadas e não percebesse a dor adulta que repousava em algum lugar sob as pálpebras, em algum lugar sob os panos que usavam na cabeça e os chapéus de feltro macios, em algum lugar na palma da mão, em algum lugar atrás das lapelas puídas, em algum lugar da curva dos tendões. Ele teria que ficar nos fundos do Greater Saint Matthew’s e deixar que a voz do tenor o vestisse de seda, ou tocar as mãos dos entalhadores de colheres (que não trabalhavam fazia oito anos) e deixar que os dedos que dançavam na madeira beijassem sua pele. Caso contrário, a dor lhe escaparia embora a risada fosse parte da dor.

Uma risada de arrancar a roupa, dar tapinhas nos joelhos, de encher os olhos de lágrimas, que poderia até descrever e explicar como tinham chegado onde estavam.

Uma piada. Uma piada de crioulo. Foi assim que começou. Não a cidade, é claro, mas aquela parte da cidade em que os negros moravam, a parte que chamavam de Fundão apesar de ficar no alto das colinas. Só uma piada de crioulo. Do tipo que os brancos contam quando o engenho é encerrado e estão buscando um pouco de consolo em algum lugar. Do tipo que as próprias pessoas de cor contam quando a chuva não vem, ou vem por semanas a fio, e estão buscando um pouco de consolo em algum lugar.

Um bondoso fazendeiro branco prometeu liberdade e um pedaço da terra do fundão a seu escravo caso ele realizasse umas tarefas muito difíceis. Quando o escravo terminou o trabalho, pediu ao fazendeiro que cumprisse sua parte do acordo. A liberdade era fácil — o fazendeiro não fez objeção. Mas não queria doar terra nenhuma. Portanto, disse ao escravo que infelizmente tinha que lhe dar uma terra no vale. Esperava lhe dar uma parte do fundão. O escravo pestanejou e disse que achava que a terra do vale era a terra do fundão. O senhor disse, “Ah, não! Está vendo aquelas colinas? São as terras do fundão, valiosas e férteis”.
“Mas ficam lá em cima, na colina”, disse o escravo.

“Lá em cima pra nós”, disse o senhor, “mas, quando Deus olha pra baixo, é a terra do fundão. Por isso que a gente chama assim. É o fundão do paraíso — a melhor terra que tem.”

Então o escravo pressionou o senhor para que tentasse lhe arrumar um pedaço. Preferia o fundão ao vale. E foi feito. O crioulo ganhou a terra na colina, onde o plantio era extenuante, onde o solo deslizava e levava embora as sementes, e onde o vento rondava durante o inverno inteiro.

O que explicava o fato de que os brancos moravam no fértil fundo do vale daquela cidadezinha litorânea de Ohio, e os negros ocupavam as colinas acima dela, era o pequeno consolo de que podiam literalmente olhar os brancos de cima todos os dias.

Porém, era encantador lá em cima, no Fundão. Depois que a cidade cresceu e a terra de cultivo se tornou um vilarejo e o vilarejo se tornou uma cidade e as ruas de Medallion eram quentes e poeirentas de progresso, aquelas árvores densas que protegiam as cabanas do Fundão eram uma maravilha de se ver. E os caçadores que iam lá de vez em quando secretamente se perguntavam se o fazendeiro branco não teria razão, no final das contas. Talvez fosse o fundão do paraíso.

Os negros teriam discordado, mas não tinham tempo para pensar nisso. Estavam muito preocupados com coisas mundanas — e com os outros, questionando já no início da década de 1920 o que era Shadrack, o que era aquela menina Sula que tinha virado mulher na cidade deles, e o que eram eles mesmos, enfiados ali em cima, no Fundão.
Toni Morrison, "Sula"

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