terça-feira, agosto 13

A propósito da neve úmida

Quinze minutos depois eu andava de um lado para o outro no quarto, numa impaciência furiosa, e de minuto a minuto aproximava-me do biombo e dava uma espiada em Liza pela fresta. Ela estava sentada no chão com a cabeça recostada na cama e provavelmente chorava. Mas não ia embora e era isso que me irritava. Desta vez ela já sabia de tudo. Eu a ofendera definitivamente, mas... não vale a pena contar. Ela adivinhou que o arroubo de minha paixão não passava de vingança, de uma nova humilhação para ela, e que ao meu ódio anterior, quase sem objeto, agora se acrescentava um ódio por ela que já era pessoal, invejoso... Aliás, não afirmo que ela tenha entendido tudo isso claramente, mas em compensação ela compreendeu perfeitamente que eu sou uma pessoa vil e que não tinha condição de amá-la.

Eu sei, vão me dizer que isso é inverossímil – alguém ser assim tão mau e idiota como eu me mostrei. Talvez acrescentem ainda que é inverossímil que alguém não a amasse ou, pelo menos, que não desse valor ao seu amor. Por que seria inverossímil? Em primeiro lugar, eu já não tinha capacidade de amar, porque, repito, amar para mim significava tiranizar e dominar moralmente. Toda a minha vida eu nunca pude nem ao menos imaginar outro tipo de amor e cheguei ao ponto de que, agora, às vezes penso que o amor, na realidade, consiste no direito que o objeto do amor voluntariamente concede de ser tiranizado. E também nos meus devaneios no subsolo eu não imaginava o amor de outra forma que não fosse uma luta que se iniciava sempre do ódio e terminava com a submissão moral, depois da qual eu não tinha ideia do que fazer com o objeto submetido. E que haveria de inverossímil, se eu já estava tão podre moralmente, tão distante da “vida viva”*, a ponto de um momento antes ocorrer-me censurá-la e causar-lhe vergonha dizendo que ela teria vindo à minha casa para ouvir “palavras compassivas”, porém eu mesmo não pude adivinhar que ela tinha vindo não por palavras compassivas, e sim para me amar, pois para a mulher é no amor que está contida toda a sua ressurreição, a sua salvação de qualquer tipo de desastre e todo o seu renascer, e não pode se manifestar de outra forma que não seja essa. Verdade seja dita, eu já não a odiava tanto no momento em que corria pelo quarto e a espiava pela fresta do biombo. Eu apenas me sentia terrivelmente incomodado por sua presença ali. Queria que ela desaparecesse. “Tranquilidade” era o que eu queria; queria ficar sozinho no subsolo. A “vida viva” me sufocava tanto, devido à minha falta de costume, que até respirar estava difícil.


Mas passaram-se mais alguns minutos e ela não se levantava, como se estivesse em letargia. Cometi a indignidade de bater de leve no biombo para lembrar-lhe... De repente ela estremeceu, ergueu-se prontamente e começou a procurar seu lenço, seu chapéu, seu casaco, como se quisesse fugir para longe de mim... Dois minutos depois ela saiu lentamente de trás do biombo e me lançou um olhar cheio de tristeza. Sorri com raiva, aliás, um sorriso forçado, por educação, e me virei para evitar seu olhar.

– Adeus – disse ela, dirigindo-se para a porta. De repente corri para ela, tomei sua mão, abri-a e coloquei ali... e tornei a fechá-la. Depois virei-me imediatamente e corri para o outro canto, para pelo menos não ver...

Neste momento eu já ia mentindo, quase escrevi que fiz aquilo sem querer, sem pensar, por tolice, porque tinha perdido a cabeça. Mas não quero mentir e por isso digo sinceramente que foi por raiva que abri a mão dela e coloquei lá... Tive a ideia de fazer isso no momento em que eu corria de um lado para o outro no quarto, enquanto ela permanecia sentada atrás do biombo. Porém o que eu posso dizer com certeza é que fiz aquela crueldade, mas não de coração, embora tivesse sido intencional, e que a fiz devido à minha cabeça ruim... Essa crueldade era tão falsa, intelectual, inventada, livresca, que eu mesmo não aguentei nem um minuto – inicialmente, corri para um canto, para não ver, mas depois,
envergonhado e desesperado, atirei-me atrás de Liza. Abri a porta de entrada e fiquei de ouvido atento.

– Liza! Liza! – chamei na direção da escada, mas a meia voz, sem firmeza...
Não houve resposta, mas pareceu-me ouvir seus passos nos degraus inferiores.
– Liza! – gritei mais alto.

Nenhuma resposta. No mesmo instante ouvi abrir-se vagarosamente, rangendo, a porta de vidro que dava para a rua, e depois ouvi-a fechar-se pesadamente. Sua batida ecoou pela escada.

Ela partiu. Voltei para o quarto, pensativo. Estava me sentindo terrivelmente mal.
Parei junto à mesa, perto da cadeira onde ela estivera sentada, e fiquei olhando estupidamente para frente. Um minuto depois, repentinamente estremeci todo: bem diante de mim, sobre a mesa, vi... em uma palavra, vi uma nota azul amassada de cinco rublos, a mesma que instantes atrás eu colocara em sua mão. Era a mesma nota; não havia outra na casa. Significava que ela conseguira atirá-la sobre a mesa no instante em que eu corria para o canto.

E então? Eu podia esperar que ela fizesse aquilo. Podia mesmo? Não. Eu era tão egoísta, tinha tão pouco respeito pelos outros, que nem fui capaz de imaginar que até ela faria aquilo. Isso eu não pude suportar. Passado um instante, fui vestir-me às pressas, enlouquecido, joguei sobre mim a primeira coisa que encontrei e sai correndo atrás dela. Ela não poderia ter dado nem duzentos passos quando saí pela porta da rua.

Tudo estava calmo lá fora, a neve caía em flocos quase perpendicularmente, deixando um tapete macio na calçada e na rua deserta. Não se via um transeunte, não se ouvia um som. Melancólica e inutilmente brilhavam os lampiões. Corri uns duzentos passos até a encruzilhada e parei. “Para onde ela terá ido? E para que estou correndo atrás dela? Para quê? Para cair de joelhos na sua frente, soluçar arrependido, beijar seus pés, implorar seu perdão? Eu até desejava isso; meu peito estava inteiramente dilacerado e jamais, jamais me lembrarei com indiferença daquele momento. “Mas, para quê?”, pensei. “Por acaso não irei odiá-la talvez amanhã mesmo, precisamente por ter beijado seus pés hoje? Por acaso eu não soube hoje novamente, pela centésima vez, o quanto valho? Será que não irei torturá-la?”

Fiquei ali parado na neve, vasculhando atentamente a névoa espessa e pensando sobre isso.

“Não será melhor”, fantasiava eu mais tarde, já em casa, tentando abafar com minhas fantasias a dor lancinante no meu coração “não será melhor que ela carregue para sempre consigo a humilhação? A humilhação é uma forma de purificação; é a consciência mais corrosiva e dolorosa! Amanhã mesmo minha presença teria sujado sua alma e extenuado seu coração. Mas a humilhação não morrerá nunca dentro dela e, por pior que seja a imundície que a espera, a humilhação vai elevá-la e purificá-la.... pelo ódio... hum... talvez também pelo perdão... Por outro lado, será que tudo isso tornará sua vida mais fácil?”

E de fato agora eu mesmo estou colocando uma questão ociosa: é melhor uma felicidade barata ou um sofrimento elevado? Então, o que é melhor?

Era isso que me passava pela mente, em casa naquela noite, quase a ponto de morrer com a dor que trazia na alma. Eu nunca havia suportado tanto sofrimento e remorso. Mas será que poderia existir a menor dúvida de que, quando saí correndo de casa, eu não voltaria da metade do caminho? Nunca mais encontrei Liza e nem ouvi falar dela. Acrescento ainda que durante muito tempo fiquei satisfeito com a frase sobre a utilidade da humilhação e do ódio, apesar de eu mesmo naquela ocasião quase ter adoecido de angústia.

Mesmo agora, quando já se passaram tantos anos, isso tudo me vem à memória de maneira excessivamente ruim. Tenho tido muitas lembranças ruins agora, mas... não será melhor terminar aqui estas notas? Parece-me que cometi um erro ao começar a escrevê-las. Pelo menos fiquei envergonhado durante todo o tempo que levei para escrever esta narrativa: consequentemente, isto já não é literatura, e sim um castigo correcional. Pois fazer longos relatos de como estraguei minha vida apodrecendo moralmente num canto, com as deficiências do ambiente, desabituando-me da vida e com meu ódio vaidoso no subsolo – por Deus que não é interessante. Um romance precisa de um herói, e aqui foram reunidos intencionalmente todos os traços para um anti-herói, e, o que é mais importante, tudo isso vai produzir uma impressão muito desagradável, porque nós todos nos desacostumamos da vida, uns mais, outros menos, e nos desacostumamos ao ponto de sentirmos às vezes uma certa repugnância pela verdadeira “vida viva”, e por isso não podemos suportar que nos façam lembrar dela. Pois chegamos ao ponto de quase achar que a verdadeira “vida viva” é um trabalho, quase um emprego, e todos nós no íntimo pensamos que nos livros é melhor. E por que às vezes ficamos irrequietos, inventamos caprichos? E o que pedimos? Nós mesmos não sabemos. Nós mesmos nos sentiremos pior se nossos pedidos delirantes forem atendidos. Pois bem, façam uma experiência, deem-nos, por exemplo, mais independência, desamarrem as mãos de qualquer um de nós, ampliem nossa esfera de ação, relaxem a tutela e nós... eu lhes asseguro: nós imediatamente pediremos a volta da tutela. Sei que os senhores talvez fiquem bravos comigo, comecem a gritar e a bater com os pés: “Fale somente sobre si mesmo e sobre suas misérias no subsolo, mas não ouse dizer todos nós”. Permitam-me, senhores, eu não estou me justificando quando digo todos. E no que me diz respeito, eu apenas levei às últimas consequências na minha vida aquilo que os senhores não tiveram coragem de levar nem à metade, e ainda por cima acharam que sua covardia era bom senso, consolando-se e enganando a si próprios com isso. De modo que talvez eu esteja mais “vivo” que os senhores. Olhem com mais atenção! Nós nem sabemos onde vive essa coisa viva, o que ela é, como chamá-la!

Deixem-nos sós, sem livros, e imediatamente ficaremos confusos, perdidos – não saberemos a quem nos unir, o que devemos apoiar; o que amar e o que odiar; o que respeitar e o que desprezar. Até mesmo nos é difícil ser gente – gente com seu próprio e verdadeiro corpo e sangue; sentimos vergonha disso, achamos que é um demérito e nos esforçamos para ser uma espécie inexistente de homens em geral. Somos natimortos, e há muito tempo nascemos não de pais vivos, e isso nos agrada cada vez mais. Estamos tomando gosto. Em breve vamos querer nascer da ideia, de algum modo. Mas basta, não quero mais escrever “do subsolo”...

Entretanto, aqui não terminam as “notas” desse paradoxista. O autor não resistiu e prosseguiu com elas. Mas nós também pensamos que é possível terminar por aqui.
Fiódor Dostoiévski, "Notas do Subsolo"

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