Depois do Acordo Ortográfico, os dicionários estão na ordem do dia. Fiz uma crônica sobre o assunto, e Rogério Frota Melzi, diretor de Operações da Estácio, como sempre irônico e bem-humorado (bem-humorado não perdeu o hífen), lembrou que o estrago seria menor se a edição atirada pela janela fosse a eletrônica. De fato, faz diferença receber um cedê ou um volume de milhares de páginas na cabeça. Disse a ele que era um bom mote para uma nova crônica. Afinal, o pai dos burros perdeu os dois hifens e agora é também eletrônico. E hífen, no singular, tem acento, mas hifens, no plural, não!
A crônica é um gênero que depende muito daqueles com os quais convivemos. A vida alheia é sempre um bom assunto. Até a fofoca é uma prova de solidariedade e de altruísmo. Não somos egoístas, não achamos nossa vida interessante. Interessante, mesmo, é a dos outros, como lembrou o poeta Mário Quintana, durante décadas cronista admirável no jornal Correio do Povo, em Porto Alegre.
Como lembrei em artigo anterior – “Cadê nossos cronistas?” (Observatório da Imprensa, 01 fev 2011) – foi necessário que escritores como Fernando Sabino e Rubem Braga se unissem a Walter Acosta e fundassem a Editora do Autor (depois mudou de nome, para Editora Sabiá) para lançar seus livros de crônicas, até hoje muito lidos.
Mas estamos falando de dicionários, que não são lidos, são consultados. Daria trabalho adaptar todos os verbetes às novas regras. Diversas editoras não têm infraestrutura para tal (têm, no plural, tem circunflexo e no singular não tem) e vão levar algum tempo para implementar o Acordo nos dicionários. Por isso, estão vendendo “novas” edições com 100 mil verbetes a menos. Lembro também que, antes do Acordo, se escrevia “infra-estrutura”, com hífen, e agora se escreve infraestrutura, sem hífen.
Antes do Acordo havia cerca de 20 mil palavras com hífen, que se tornou o pomo da discórdia. Acordo, discórdia, o étimo é o mesmo. No meio de tudo está nosso coração. Paulo Leminski, poeta e cronista, alertou: “Cuidado onde pisas/ Pode ser meu coração”.
Com o trema, a questão ficou simples. Ele foi expulso da língua portuguesa! É verdade que nos açougues até a linguiça já tinha mandado embora o pobrezinho faz tempo!
Nas línguas onde permanece, como no alemão, o trema queixou-se aos outros sinais: “Até o cedilha, que não tem coragem de começar uma palavra, ficou! E eu, sempre por cima de todas, jamais fiquei por baixo de nenhuma, fui banido! Os brasileiros, que têm uma habilidade verbal impressionante, vão perder algo em sua famosa eloquência, agora sem trema! Vou requerer indenização por tempo de serviço! Bom, eles ainda podem se redimir. Nas edições eletrônicas, é só dar um comando e volta tudo como estava. É dever de quem erra consertar o que estragou”.
Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, outro cronista, “de notícias e não-notícias faz-se a crônica”. Mas agora não notícia não tem mais hífen.
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