“Tem de morrer, estou dizendo, tem de morrer, tem de morrer”, e assim foi, sob uma lua de alabastro, até que um grito alto atravessou a noite: “Pro inferno com essa música”, as palavras suspensas, cristalinas, na branca noite gelada. “Nos filmes você usava playback e só mexia a boca, portanto me poupe desse barulho infernal.”
Gibreel, o solista desafinado, brincava ao luar, cantando seu gazal improvisado, nadando no ar, borboleta, de peito, se enrolava numa bola, abria braços e pernas no quase-infinito do quase alvorecer, adotava posturas heráldicas, rampante, agachado, opondo leveza à gravidade. Ele rolou, feliz, na direção da voz sardônica. “Alô-alô, Salad baba, é você, que bom. Que tal, Chumch?” Ao que o outro, uma sombra meticulosa caindo de cabeça, o terno cinzento com todos os botões do paletó abotoados, braços colados ao corpo, confiante na improbabilidade do chapéu-coco na cabeça, fez uma careta de quem não gosta de apelidos. “E aí, Spoono”, Gibreel gritou, provocando uma segunda careta de ponta-cabeça, “A Própria Londres, bhai! Lá vamos nós! Aqueles filhos da puta lá embaixo não vão nem saber o que foi que caiu em cima deles. Se foi meteoro ou raio ou a ira de Deus. Saído do nada, baby. Drrraaammm! Rrram, na? Que chegada, yaar. É ou não é: splat.”
Saindo do nada: um big bang, seguido de estrelas cadentes. Um começo universal, um eco em miniatura do nascer do tempo... o jato jumbo Bostan, voo AI-420, desintegrou-se sem aviso prévio, muito acima da grande, podre, bela, branca de neve, iluminada cidade, Mahagonny, Babilônia, Alphaville. Mas Gibreel já a batizou, não devo interferir: Própria Londres, capital de Vilayet, cintilando, piscando, acenando na noite. Enquanto nas alturas himalaias um sol breve e prematuro explodia no ar empoeirado de janeiro, um bip desaparecia das telas de radar, e o ar rarefeito se enchia de corpos, despencando do Evereste da catástrofe para a palidez leitosa do mar.
Quem sou eu?
Quem mais está aí?
A aeronave partiu-se em dois, como uma vagem cuspindo sementes, como um ovo que revela seu mistério. Dois atores, o irrequieto Gibreel e o abotoado, carrancudo Mr. Saladin Chamcha, caíam como farelos de tabaco de dentro de um velho charuto partido. Acima, atrás, abaixo deles no vazio, poltronas reclináveis, fones de ouvido estereofônicos, carrinhos de bebidas, saquinhos para enjoo, cartões de embarque, videogames do free shop, toucas, copos de papel, cobertores, máscaras de oxigênio. Além disso — pois havia mais do que uns poucos migrantes a bordo, sim, uma boa quantidade de esposas que tinham sido interrogadas por razoáveis, aplicados funcionários sobre o tamanho e as pintas da genitália dos maridos, um bom número de crianças cuja legitimidade o governo britânico colocava em mui compreensível dúvida — misturados aos restos do avião, igualmente fragmentados, igualmente absurdos, flutuavam fragmentos de alma, memórias partidas, eus degradados, línguas pátrias cortadas, privacidades violadas, piadas intraduzíveis, futuros extintos, amores perdidos, sentidos esquecidos de palavras ocas e sonoras, terra, vínculo, lar. Um pouco tontos por causa da explosão, Gibreel e Saladin caíam como trouxas derrubadas pelo bico aberto de uma cegonha descuidada, e como Chamcha estava caindo de cabeça para baixo, na posição recomendada para os bebês que penetram no canal de parto, começou a sentir uma surda irritação pela recusa do outro em cair do jeito normal. Saladin mergulhava de cabeça enquanto Farishta abraçava o ar com pernas e braços, um ator excessivo, exagerado, sem nenhuma técnica de contenção. Lá embaixo, cobertas de nuvens, esperando a entrada deles, as correntes congeladas do canal da Mancha, área escolhida para sua reencarnação aquática.
Salman Rushidie, "Os versos satânicos"
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