sábado, maio 9

Notas do anoitecer da crise

Edição extra. Sem notícia e sem esperanças. O céu está castanho.

Estou chegando da rua, onde me disseram que tudo iria parar à meia-noite.

– Mas, São Paulo, também? –... perguntei, com algumas esperanças. Não me responderam. Um dia, ficará provado, que São Paulo pode parar, sim.

1 – Não sei se a situação nacional é tão grave, como dizem. Sei que a minha é gravíssima. O dinheiro acabou. Restava-me uma caderneta de cheques, que fui desfolhando, sem muito cuidado, nos botequins das cercanias. Claro, os cheques se acabaram. Terei crédito, para levantar dinheiro, na voz? Isto é que se irá saber.

2 – Cada pessoa devia fazer o seu dinheiro. Quem tivesse mais jeito para desenho, levaria vantagem. Nada mais justo. Poderia fazer uma nota de 5 mil cruzeiros, muito parecida com as que estão circulando por aí, valendo tanto quanto. Que tempo gastaria eu para desenhar uma nota de 5 mil cruzeiros? Caprichando, umas nove ou dez horas. Então, após trabalhar nove ou dez horas, qualquer homem tem direito a 5 mil cruzeiros.

Em meu caso, não me conteria e acabaria desenhando Vinicius de Morais, no lugar de Tiradentes. Seria preso, como falsificador.


3 – As notícias começam a rarear. E, quando rareiam as notícias, começam os boatos. Disseram-me, por exemplo... cala-te boca. O melhor é deixar de lado a crise e ir escrevendo algumas lembranças. Acho que já esgotei as minhas. Em todo caso... Uma vez, eu era tão pequeno, que as empregadas deixavam que eu tomasse banho no rio, com elas. Deixavam só, não: me convidavam. Naquele tempo, não havia roupas de banho. Então, minha mãe soube e perguntou se a iniciativa partira de mim ou das empregadas. Se era eu que tinha querido ou se foram elas. As empregadas disseram que o convite fora meu. Então, me fizeram aprender depressa o Padre-Nosso e a Ave-Maria, para rezar dez de cada, até o demônio sair de mim. E fui proibido de tomar banho no rio, mesmo sozinho. Nunca entendi por quê.

Só hoje descobri porque as empregadas disseram que fui eu que inventei o banho. Se elas confessassem, que me convidaram, seriam condenadas ao opróbrio nacional.

4 – Na usina, havia um lugar mal-assombrado: "A volta da jaqueira." Quem passasse por ali, de noite, veria sempre uma alma penada.

Uma noite, eu e Tião resolvemos fazer um susto aos outros primos, que tinham saído a cavalo. Tião embrulhou-se num lençol e, quando os cavalos vinham chegando, atravessou-se na estrada. Ninguém teve medo. Ao contrário, cada um, com o seu chicote, bateu na alma, até não poder. O coitado do Tião gritava, mas, ninguém lhe ouvia os gritos. Saiu com o corpo todo lanhado.

5 – Quase todas as minhas lembranças são olfativas. Ou, em quase todas, há um cheiro qualquer, que se perenizou, em mim. Eu me lembro, por exemplo, do cheiro do rio Serinhaen. A usina derramava calda em suas águas e o rio tinha um cheiro azedo, insuportável. As piabas e os jundiaís (peixes) morriam em massa, com os olhos saltados e ficavam boiando, de barriga para cima. Antes de morrer, nadavam tontos, zanzando, na beira do rio, e nós os pegávamos com a mão.

Também, inesquecível o cheiro do leite ao pé da vaca. Não era o cheiro do estábulo. Do leite. O leite quente, ao sair da teta da vaca tinha um cheiro forte e bom, que hoje me recorda como nós éramos felizes, em nossa vidinha de menino de engenho. Nosso relógio era o trem. Quando ia, de manhã cedinho. Quando voltava, pelas sete da noite. Numa viagem e noutra, era hora de comer.

6 – Outro cheiro inesquecível, o do requeijão, que se fazia na cozinha. Não sei quantas latas de leite, para fazer uma travessa de requeijão. Mas, que delícia! Vinha molinho para a mesa, cheio de lagoas de manteiga. Ao mesmo tempo, na cozinha, se fazia um tacho de doce de goiaba. A casa toda cheirava a doce de goiaba durante três, quatro dias. E a gente, por qualquer motivo, comia doce com requeijão.

Lembro que o doce em calda, se caísse num dente mais avariado, era uma dor de tinir. Então, a gente escolhia o lado que mastigava. Arrumava o doce na boca, que era para não dar dor de dente.

7 – Naquele tempo só havia duas soluções, para casos de dor de dente – arrancar ou botar um remedinho, chamado Cêra do Dr. Lustosa. Ainda haverá a Cêra do Dr. Lustosa? Creio que não, porque se houvesse o rádio anunciaria. Quando não era dente de leite, o pai levava ao dentista, para "chumbar". Isto é, obturar, com chumbo. Doíííaaaaa! Mesmo depois de chumbado, o dente doía, a vida inteira.

Então, a vida inteira, em cada vez que o menino fosse comer qualquer espécie de doce, tinha que preparar a boca. Arrumar a comida do lado em que não houvesse dente chumbado.

Cocada, nem fala. Só em ouvir a palavra, quem tivesse dente furado, ou chumbado, sentia uma pontada violenta e tinha que bochechar água quente.


Hoje, minhas depressões, minhas angústias (não são muitas) eu atribuo, todas elas, às dores de dente da minha infância.

Passar, passar de todo, ainda não passaram.

8 – Meu pai era tenente-coronel da Guarda Nacional, e, disso, a família muito se orgulhava. Mas, eu tinha medo de guerra e perguntava à mamãe.

– Havendo guerra, papai tem que ir, não tem?

– É dos primeiros... – respondia ela.

– E se ele se ferir em combate?

– Ah, botam iodo.

Naquele tempo só tinha um remédio, para qualquer ferimento: iodo. Ardia. Como ardia! Mas, também, dois dias depois a pessoa estava boazinha.

Em Pernambuco havia, porém (e ainda há), um remédio, que servia para tudo. Inclusive, para beber, em certos casos, como por exemplo: se a gestante tomava um susto ou levava uma queda. Chamava-se e ainda se chama: Elixir Sanativo. A fórmula pertencia à família Guimarães que (ouvimos dizer) recebia propostas vantajosas para vendê-la até para a Europa. O gosto e o cheiro eram deliciosos (meio travoso, o gosto). E oferecia uma grande vantagem sobre o iodo: ardia menos.

Ainda hoje, quem voltar ao Recife, há de encontrar no armarinho do banheiro de qualquer família, um vidrinho de Elixir Sanativo. Em ferimentos leves, é superior a qualquer antibiótico.


9 – Houve muitos mortos, em nossa família. Os velórios eram dramáticos. O difícil era desgrudar a viúva, que queria sempre ir com o morto, abraçada a ele. E gritava, sem parar:

– Eu quero ir! Eu quero ir!

E o padre, que tinha vindo para a "encomendação do corpo", dizia três ou quatro palavras santas, como:

– Ele vai para junto de Deus, minha filha.

Depois:

– Ele ficará à sua espera, no céu.

Ao fim de tudo, uma pessoa da família, mulher, ajeitava o cabelo da viúva. Era um gesto, do mesmo tempo, de zelo e carinho, guardado até hoje, em minha lembrança. Um cuidado comovente e inútil.

10 – No Recife, até muito pouco tempo, vendiam-se cigarros em "porções". Por exemplo, as crianças e os pobres compravam sempre um tostão de cigarros. Duzentos réis, no máximo. Gente já de algum dinheiro comprava meio maço. Só rico é que comprava o maço inteiro

No tempo em que comecei a fumar, havia cigarros de trezentos réis (os mais baratos), de quinhentos, de oitocentos, de 1.100, 1.500 e de 2 mil réis, os caros Colúmbia, que só tendo muito dinheiro, podia-se fumar. Os meus eram os de oitocentos réis. Regência, ovais, de fumo forte.

Pois bem, em 1940, quando cheguei ao Rio, passei no Ponto Elegante (por ali, onde, hoje, é o Top Club) e pedi:

– O senhor quer me dar um tostão de Regência?

– Só vendemos o maço inteiro... – respondeu-me o homem. E quase morri, de tanta vergonha. Mas, estava inocente. Não sabia que uma pessoa das minhas posses fosse obrigada a comprar um maço inteiro. Havia dois banhistas perto, um rapaz e uma moça, saíram rindo de mim, imitando meu sotaque e minha candura:

– O senhor quer me dar um tostão de Regência?

11 – E aqui vão estas lembranças, de quem se despurificou, com o tempo. De quem teve de aprender todas as coisas depressa, para ser lembrado e lembrar a vida, é preciso. São elas escritas num anoitecer de segunda-feira, quando nenhuma notícia é alegre. Vive-se um apreensivo começo de noite. Quanto a mim, estou por tudo. Ah, por que os homens não sabem viver em paz, uns com os outros? Bastaria que cada um fizesse direito sua parte. Eu sempre procurei fazer direito a minha parte... ou, ao menos, fazer tudo o que me pagam para fazer. E ainda faço uma porção de coisas de graça, para ajudar... ajudar... ajudar...

Que poderia escrever um cronista, em dia assim? Todas as ordens foram traídas. Todas as promessas foram desfeitas. Já começo a sentir algum desgosto de ser brasileiro... e ter que continuar sendo, por todos os séculos, por todos os remorsos, por todas as insônias, pela minha pobreza, pelo meu amor. Haverá outro dia esperança? Quando?

Então, leitor, contente-se, por hoje, com estas notas escritas, sob um céu castanho. Feitas de uma melancólica preguiça de ser. Sim. De ser. Partilhe comigo desse perdoável desgosto pelas coisas paradas, pelos homens parados, por um deus parado. Há um desânimo geral, que nem a poesia salvará. A poesia, apenas, nos ensinaria a morrer. Assim seja.
Antônio Maria, "O jornal de Antônio Maria"

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