sábado, julho 31

Os pássaros

Iza Dudzik

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Mario Quintana

Dia de faxina

 


O passeio

27 de outubro - O dia foi um passeio vagaroso, íntimo, com um amigo, ao longo da alameda que margina o rio. Duas mulheres de preto vêm vindo ao noso encotro, do nascente. Murmuram, na tarde fria, uma oração, alheias ao sol que desce, ao rio que corre manso, a nós que seguimos mudos. uma delas traz um rosário na mão. Tão metafísicas, tanto, que nos lembram os tibetanos dos livros maravilhosos que há sobre tibetanos. Como estão naturalmente perto de Deus, a muitos mil metros de altura, as suas rezas já estão para além das palavras. À porta de cada templo há um moinho que mói o tempo. O crente, então, chega e reza. Mói. Neutro como um boi de canga, arrasta a pedra, e mói o nada por uma hora, por duas, por quantas os seus pecados.

Na tarde fria, aquelas duas mulheres de preto lembraram-nos o limite para que tende a oração, quando a oração é eita por almas que já são do céu.
Miguel Torga, "Diário I"

Manhã de inverno

 


Fantasmas de Minas

Assim que ele soube que eu e ela pretendíamos passar o carnaval em Ouro Preto e não conseguíamos hotel, amavelmente ofereceu-nos sua casa. É uma linda casa, informou com ar matreiro.

Tão matreiro que dava até para desconfiar. Mas eu já ouvira falar na casa, do tempo em que Marchette morava lá e passava o dia pintando seus belos quadros de fundo verde-escuro. O próprio Scliar retratou recentemente, numa sucessão múltipla de lindos quadros, 180 graus da paisagem de Ouro Preto vista da janela da casa. E eu sabia que Vinícius, entre outros, costumava passar longas temporadas hospedado lá. Uma casa de artistas, portanto. Não havia por quê desconfiar.

E lá fomos nós, serpenteando pelas longas estradas de Minas. Passamos Juiz de Fora, Barbacena, Santos Dumont — quando dei por mim Belo Horizonte já estava pintando e nada de Ouro Preto. Paramos num posto de gasolina.

– Pode nos informar se já passamos a estrada de Ouro Preto? O mineiro coçou a cabeça, cauteloso:

– É conforme, moço: de que lado ocês tão vindo?

Minha primeira desconfiança surgiu diante do portão: enorme, enferrujado como o de um cemitério do interior, fechado a cadeado com duas correntes, sinistro dentro da noite que baixara. E atrás dele não havia casa alguma.

– Pula o muro — sugeriu um menino, morador nas vizinhanças. — É assim que o caseiro faz.

O muro de pedra era realmente baixo e fácil de ser pulado. Então para que o portão? — me perguntei, depois de seguir a recomendação do menino.

Não tive tempo de me perguntar mais nada: de súbito me vi despingolando pirambeira abaixo, tropeçando no calçamento de pedras irregulares, mergulhando na escuridão como nas profundas dos infernos. Consegui afinal frear o corpo diante de uma pontezinha de madeira envolta em sombras — e divisei a casa, do outro lado, encravada no meio da encosta, portas e janelas fechadas. Tudo às escuras, sem o menor sinal de vida. O caseiro, onde estaria o caseiro? Pelo sim pelo não, resolvi voltar e voltar correndo, escarpa acima, antes que as sombras me engolissem. Cheguei ao portão botando o coração pela boca, entrei no carro:

– Não tem ninguém lá — informei, quando recuperei a fala.

O mesmo menino nos ensinou onde morava o caseiro — e em pouco a mulher do caseiro vinha abrir a casa para que nos instalássemos. Pairava nos quartos fechados um ar de cinco meses atrás. Preferimos os de cima, instintivamente recusando a sugestão da caseira, segundo a qual Vinícius costumava ficar nos de baixo: o acesso a eles se fazia por uma escada apertada e lúgubre como as que levam às masmorras de um castelo.

– Não deixem de trancar bem as portas — recomendou a mulher. E nos entregou à nossa própria sorte.

Nessa primeira noite atribuí o sussurro de vozes no porão ao vento que soprava lá fora; o ruído de portas que se abriam e se fechavam a estalos de madeira velha; os passos no corredor aos excessos de minha mórbida imaginação. Não disse palavra sobre o assunto — mesmo porque não teria voz para tanto. Preferi fingir que dormia, e a manhã veio me encontrar insone, mas lépido e fagueiro como um ressuscitado: a luz do dia reintegrava a casa em seu contexto, harmoniosamente recomposta na paisagem de Ouro Preto, como me haviam antecipado: realmente uma bela casa antiga.

Talvez um pouco mais antiga do que eu desejaria.

Mas o que não é antigo na antiga Vila Rica? O Pouso de Chico Rei, por exemplo, onde fomos recebidos de maneira fidalga com um excelente almoço, é um modelo de bom gosto em matéria de antiguidade. Lá encontramos toda uma equipe de cinema, empenhada na filmagem daquela história de Drummond sobre a moça que recolhe uma flor num sepulcro e à noite recebe telefonemas sepulcrais.

Por causa do carnaval, os guardas impedem a passagem dos carros nas ruas do centro, o jeito é mesmo ir a pé. E tome ladeira. Há quem sugira que a melhor maneira de subir é de costas, para se ter a ilusão de estar descendo. E o carnaval comendo solto na cidade, com bumbos e zabumbas tocando zé-pereira noite adentro. Só que isso não tem nada a ver com Ouro Preto.

Então nos recolhemos à nossa tebaida. Transpomos o pesado portão de ferro e vamos escorregando ladeira abaixo, tropeçando na escuridão. A ponte de madeira, pude verificar durante o dia, se lança sobre uma grota abismal onde reside há milênios um dragão de sete cabeças. Agora à noite ele só espera que cruzemos a ponte para reduzir- nos a cinzas com um jato de fogo saído de uma das suas sete bocarras.

Mal ousamos iniciar a travessia, percebo que a janela do andar inferior — o tal quarto do Vinícius — está acesa.

– Hoje vai ter festa no porão — adverti.

Entramos pela cozinha e trancamos a porta, como se nada estivesse acontecendo. Mas quem é que era homem de ir lá embaixo apagar a luz que nem eu nem ela havíamos acendido? Tendo verificado que as portas e janelas cá em cima estavam devidamente fechadas, resolvi ignorar o que se passava lá embaixo.

Quando já me recolhia ao quarto, eis que de súbito é posta à prova a minha natureza de homem:

– Será que você pode me trazer um copo dágua? — pediu ela.

Como negar água aos que têm sede? Revesti-me de bravura e fui à cozinha buscar o copo dágua.

Somente quando vinha voltando é que as janelas e portas da sala me chamaram a atenção. Estavam abertas.

– Não é por nada não, mas as portas e janelas da sala estão escancaradas.

Ela pensou que eu estivesse brincando — tive de levá-la até a sala para que acreditasse.

– Foi você mesmo.

– Eu? Não brinco com essas coisas. Ela se voltou com olhos enormes:

– Que tal se a gente fosse embora daqui?

Nunca uma sugestão judiciosa como essa foi tão prontamente aceita.

Em Tiradentes o fantasma do Padre Toledo passeia pelo imenso casarão onde ele morou, hoje transformado em museu. Não se vê viva alma pelas ruas: a cidade muito quieta sob o sol, caiada de branco como um sepulcro, tudo parado nas ruas mortas. Resolvemos seguir viagem, e sem olhar para trás, para não nos transformarmos em estátuas de pedra-sabão.

Em Congonhas o que há é a igreja sob a guarda de seus doze Profetas. Doze fantasmas? Em vôo lento, um urubu risca o azul do céu. Tudo quieto aqui embaixo, parado, em suspenso. Até aqui não chega a confusão do mundo. Saímos do mundo. O tempo parou. Projetados contra o céu, eles são, como afirmou o poeta, “magníficos, terríveis, graves e ternos” “nesta reunião fantástica, batida pelos ares de Minas”.

E em Belo Horizonte o fantasma sou eu próprio. Procuro nestas ruas mal- assombradas a cidade invisível onde vivi até a juventude. Ao dobrar uma esquina, esbarro com o fantasma de um jovem de 20 anos.

Ao regressar ao Rio, sentimos que alguma coisa nos acompanha: alguma coisa feita de ar e imaginação, que não é propriamente um fantasma, mas o espírito de Minas a impregnar-nos de passado e de eternidade. E aceleramos alegremente em direção ao futuro.
Fernando Sabino

sexta-feira, julho 30

Imersão

 

 Anup Saswade

Folhas, flores e frutos

Uma vez, passando umas férias em Belo Horizonte, tomei um bonde, cujo percurso me era desconhecido. Ia olhando os bangalôs de um bairro novo, quando de repente, em sobressalto, disse em voz alta: É ela!

E era ela mesmo, sem tirar nem pôr, uma árvore, uma alta e robusta paineira que conheci quando menino. A cidade se estendera até o limite extremo do meu mundo, a minha selva. Desci do bonde e não perguntei à minha amiga de infância o que acontecera às companheiras, já sabia: progresso no Brasil é matar as árvores para plantar uma roça ou uma casa. Essa civilização às avessas, antivegetal, do campo faz o deserto, e da cidade tropical faz o purgatório. O Rio, por exemplo, o Rio é uma cidade que tem horror à chuva - assim como o resto do mundo tem horror à bomba atômica - porque foram dizimados os "grandes arvoredos" de que falam os cronistas do primeiro século.

É uma facécia nossa dizer que ninguém pode destruir o Rio. Mentira, pode-se sim, acabarão destruindo - e sem que se apure a responsabilidade, dissolvida na enchente de lama e tempo.

Mas estou um pouco cheio do Rio e volto à paineira. Belo Horizonte é para mim uma cidade de muitas árvores que se foram. No início da avenida Paraúna, no chão vermelho de pó, havia um espinheiro que dava sombra a dois namorados. Na rua de Lavras me lambuzava de jalão. Perto do Ipiranga Futebol Clube me abastecia de favas, moeda corrente no grupo escolar. No Parque Municipal amava mais do que todas as outras plantas um pé de jenipapo. Depois de comer as frutas, brincava de marinheiro em mastro de navio, nas ramagens mais altas do cajueiro da rua Alagoas. Os pinheiros da caixa d'água da Serra existem ainda, pelo menos alguns. Convivi com uma linda mangueira em toda a sua intimidade, a resistência, as distâncias, as reentrâncias de cada galho. Não poucas tardes da minha infância passei acastelado na copa dessa árvore amiga, hoje morta.

Minhas andanças em noites de devastação adolescente estão para sempre associadas aos pequenos frutos dos ficus da avenida Afonso Pena, friamente cassados por um prefeito. E a um fruto inchado e fibroso que esborrachava nas madrugadas mornas, quando subia a avenida João Pinheiro.

Na casa do médico Paulo Rosa, defendida de cacos de vidro, morava a jabuticabeira mais redonda e mais bonita de toda a cidade: parecia uma baiana florida. Caco de vidro não quer dizer nada quando se tem dez anos. Em um quintal da rua Professor Morais, descobrimos parreiras carregadas, quando a uva era um luxo importado.

Não morri como ladrão um pouco por sorte e um pouco porque tinha pernas finas e ligeiras. Saqueamos os frutos mais variados em todos os bairros: Funcionários, Santo Antônio, Santa Efigênia, Lourdes... todos. Roubei na rua Pernambuco, na rua Fernandes Tourinho, na avenida Bias Fortes, na rua dos Inconfidentes, na Prefeitura e até no Palácio da Liberdade. Vitaminas não me faltaram quando criança, manga, coco, banana, jabuticaba, romã, ameixa, pêssego, amora, goiaba... o que existisse.

Belo Horizonte era uma cidade vegetal, um jardim de flores e frutos; e é verde e perfumada quando percorro antes de dormir aquelas ruas compridas e os jardins pasmados pelas rosas.

Polinizadora

 


materialidade da escrita

Porque a materialidade da escrita é a escrita. De facto, Santa Teresa escreveu como escreveu porque a mão ficava cansada de tanto meter a pena no tinteiro, daí a sua letra enfastiada e caótica e feroz e com mau feitio. Se tivesse tido uma esferográfica Bic, o seu estilo teria sido outro.


De maneira que as suas visões de Deus foram visões materiais da sua escrita.

Escrever é uma mão que se move sobre um papel, um pergaminho ou um teclado.

Uma mão que se cansa.

Escreve-se uma coisa ou outra conforme o papel, a mão, a esferográfica, a pena ou o computador ou a máquina de escrever. Porque a literatura é matéria, como tudo. A literatura são palavras gravadas num papel. É esforço físico. É suor. Não é espírito. Já basta de menosprezar a matéria.

Moisés escreveu dez mandamentos porque se cansou de cinzelar a pedra. Estava a suar, estava esgotado. Poderiam ter sido quinze, ou vinte e cinco, e se foram dez tal deveu-se às laboriosas e pesadas condições materiais da escrita sobre a pedra. Toda a história ocidental frequenta o idealismo, ninguém parou para olhar as coisas de outra maneira, especialmente da maneira mais simples, a que se lembra da matéria, e das vãs realidades”
Manuel Vilas, “Em tudo havia Beleza"

quinta-feira, julho 29

Quando o livro vira uma estrela


Quanto maior é um romance ou um poema, mais a sua magina nos separa da mão de barro que o escreveu.
Miguel Torga, Diário I

Sinalização da estrada

 


Defuntos

Leio num jornal de Porto Alegre a comunicação da morte de uma pessoa da colônia alemã. A comunicação, que é também um agradecimento, ocupa um quadro em negrito, duas colunas. Não conhecia esse costume curioso. A idade do defunto é dada em anos, meses e dias. Diz depois onde ele nasceu e quando. Faz depois uma lista dos lugares onde morou, conta seu casamento, diz o número de filhos. Depois dessa biografia vem a história da morte. A doença é narrada com todas as minúcias e complicações, e aí entra o agradecimento ao médico. Vem então a hora exata da morte e o número das pessoas enlutadas. O agradecimento se estende a todas as pessoas que prestaram algum auxílio durante a enfermidade, à orquestra que executou peças fúnebres e aos coros que se fizeram ouvir. O sacerdote também merece agradecimentos, assim como todos os que acompanharam o enterro, os que mandaram flores e, por fim, os coveiros. A longa comunicação abre-se com a "triste notícia de que aprouve a Deus Nosso Senhor chamar à vida melhor fulano" e é assinada pelos "sobreviventes enlutados". Essa palavra "sobreviventes" me parece aí excelentemente empregada. Dá a ideia justa de que a morte do parente foi uma catástrofe da qual se salvaram os outros; dá uma piedosa ideia de desastre.

A comunicação, segundo dizem, é coisa banal. Os jornaizinhos da colônia alemã sempre trazem coisas semelhantes. E uma pessoa do jornal de Porto Alegre disse que na tradução foi suprimida uma passagem referente ao tratamento empregado no doente, passagem que para o público do jornal brasileiro poderia parecer de mau gosto e mesmo, de certo modo, ridícula.

Ora, essa atitude dos parentes diante da morte me parece uma rica lição de psicologia de um povo. Não vou extrair essa lição, que de psicologia não entendo. Os brasileiros quando noticiam a morte de alguém preferem, quase sempre, omitir certos detalhes, especialmente sobre a doença.

O brasileiro muitas vezes se acanha em perguntar a uma pessoa de que morreu o seu parente, ou só o faz quando tem alguma intimidade. Os detalhes da doença ficam, em geral, para rodas estritamente íntimas ― quase sempre de mulheres ― e só no caso de se tratar de uma personalidade extremamente importante são divulgados pelos jornais ― assim mesmo de maneira mais ou menos vaga. A morte desperta em nós uma espécie de pudor. Muitas vezes agradecemos ao médico, mas jamais agradecemos ao coveiro. Possivelmente um médico brasileiro ficaria um pouco aborrecido vendo que os parentes do defunto agradecem ao mesmo tempo a ele e ao coveiro...

Outra coisa que me parece notável na comunicação alemã é a ausência de adjetivos transcendentais. Ali não se fala em saudade eterna, nem em dores inconsoláveis, nem em golpe profundo, nem em inexprimível gratidão. O estilo é, via de regra, mais objetivo; conta muito e comenta pouco. Nós costumamos atulhar nossos defuntos de adjetivos ― algumas vezes bastante exagerados e convencionais ― embora piedosos.

Enfim eu creio que o defunto alemão fica mais solidamente enterrado. Depois que se lê uma comunicação dessas não há mais o que perguntar; nem o que pensar, nem mesmo o que sentir. A pessoa viveu assim assim, ficou doente assim assim, morreu assim assim e foi enterrada assim assado.

O defunto brasileiro é; enterrado numa terra fofa de adjetivos, coberta de pudores e vaguidões. É mais transcendental e ao mesmo tempo mais difuso. A morte para nós é algo mais subjetivo: o defunto morre mais dentro de nós que em si mesmo. Nossa dor, sincera ou fingida, é posta em primeiro plano ― e o defunto recua para um fundo vago, entre flores. Só no caso de uma tuberculose, por exemplo, falamos em "pertinaz enfermidade" ― é o suficiente para que o público saiba que afinal de contas a gente já sabia que a pessoa ia morrer e o golpe não foi muito grande.

Enfim cada povo enterra defuntos a seu jeito. No cemitério, defuntos com defuntos não fazem grande diferença, mesmo em túmulos diversos. Todos são defuntos, e apodrecem, e viram pó. Quanto às almas ― se há almas ― têm elas seu destino de acordo com certas normas. Almas não têm sangue, e ninguém lhes examina o sangue para saber se é puro ou não. Corpos e almas são todos iguais perante a Lei. Eu, tu, ele, nós, vós, eles e os outros, todos ficamos iguais ― e isso faz pensar que é um pouco ridículo que antes da morte a gente queira se fazer tão diferente.
Rubem Braga, "Uma fada no front"

quarta-feira, julho 28

Mergulhe!

 

 Elisa Bochicchio

Vida de excertos

Claro que eu, como leitor incansável, tinha as minhas ambições. Também queria escrever um livro. Sentava-me frequentemente em frente de uma máquina de escrever e escrevia coisas que deitava fora. Raramente ia além da segunda página. Cheguei mesmo a pensar escrever um livro só com inícios. Inícios de romances. Sempre gostei dos primeiros parágrafos dos livros e até achei que poderia ser uma boa ideia: um livro feito de inúmeros livros que não acabavam, um livro feito de começos. No fundo, um livro como a nossa vida. Sabemos mais ou menos como começou, mas não fazemos ideia de como acaba. Seria mais realista se escrevêssemos a vida só com primeiros parágrafos, pois os finais, no que respeita a nós mesmos, são uma fantasia.
Afonso Cruz, "Enciclopédia da Estória Universal – Arquivos de Dresner" 

Pão nosso de cada dia


 

Quem manda no mundo são os leitores

O lugar-comum repete que, hoje em dia, quase ninguém lê livros. O tom é sempre o mesmo e eu perco logo interesse na conversa, estou cansado de ouvi-la, sei como evolui: esse lamento avança por uma espiral de lamentos, transforma-se num longo eco de si próprio e desagua na conclusão inevitável de que o mundo está condenado, de que não há solução.

Embalado por essa cantiga, o lugar-comum esquece-se de que nunca se leram tantos livros na história da humanidade. Vivemos precisamente no tempo em que se leem mais livros. O ser humano comunica com palavras há cerca de cem mil anos. A primeira vez que as escreveu foi há três mil e quinhentos anos, mais ou menos. Durante muitos séculos, copiados um a um, ou mesmo já impressos, os livros foram considerados um artigo de luxo, reservado a muito poucos. Foi apenas há décadas que se começou a perseguir o objetivo da alfabetização generalizada. Alguns de nós, entre os quais me incluo, carregam a memória de avós analfabetos, que nunca leram qualquer livro.


Neste preciso momento, enquanto estamos aqui, há milhares ou milhões de pessoas a ler livros no mundo. Não são a maioria, como nunca foram, mas fazem a diferença.

O lugar-comum costuma afirmar que, hoje em dia, os livros já não têm influência nos grandes debates da atualidade social. E volta a enganar-se. As ideias contidas nos livros alastram pela sociedade através do contágio. Mesmo que de forma velada, as razões dos leitores têm enorme presença. Em primeiro lugar, porque nascem de uma fonte sólida. Os não-leitores, com a sua informação retirada de títulos da internet, frases avulsas daqui ou dali, capitulam perante reticências e onomatopeias, falta-lhes verbos, substantivos. Entre todos os adjetivos, apenas possuem “bom” e “mau”. Mesmo quando subtis, as vantagens dos leitores são inequívocas.

Os jovens de hoje em dia não gostam de ler livros, afirma o lugar-comum. Logo depois, segue-se uma lista de outros defeitos dos jovens que, antes, eram muito melhores, o mundo está condenado, não há solução. Aquilo que falta averiguar é a natureza desse “antes”. Quando foi esse tempo idílico? Com frequência, as queixas de que os jovens não leem chegam de pessoas que leram um livro em 2009, parece que foi ontem.

Como havemos de convencer os jovens a ler? Lançam-se em conjeturas que esbarram sempre no lugar-comum: a tecnologia. Quando eu era criança, as televisões eram a preto e branco, só tínhamos dois canais, as emissões começavam às 18h, dava meia-hora de desenhos animados por dia e, mesmo assim, a tecnologia já era culpada pela falta de leitura dos jovens.

O lugar-comum limita o pensamento. Quando se afirma que o mundo está condenado, que não há solução, está a condenar-se o mundo, não se lhe permite solução. Além disso, como se espera cativar para a leitura de livros com a repetição exaustiva de que, hoje em dia, quase ninguém lê livros?

Se querem convencer os vossos filhos a ler, comecem vocês a ler agora mesmo. Não precisam obrigar os vossos filhos a ler, não precisam de castigá-los se não lerem, não precisam sequer de falar do assunto, simplesmente abram um livro e leiam. Depois, quando esse acabar, procurem outro livro e leiam-no também. Desliguem o telemóvel, e leiam.

Inevitavelmente, esse gesto trará resultados. Começará por transformar a vossa cabeça, até a maneira de respirar e, um dia, quando menos esperarem, hão de encontrar os vossos filhos a ler, exatamente da maneira que vocês leem, com a mesma generosidade, se for esse o caso.
José Luís Peixoto

terça-feira, julho 27

Desenvolvimento tecnológico

 


O vício dos livros

Edith Wharton achava 
(Del vicio de los libros), 
sobre o vício da leitura, 
que este se comparava ao desenvolvimento tecnológico, como por exemplo o do vapor ou o do sufrágio universal. Dizia ainda que “o vício mais difícil de erradicar é aquele que o vulgo considera virtude. Geralmente considera-se que ler lixo é um vício, sim, mas hoje em dia a leitura em si mesma — o costume de ler, que de certo modo não deixa de ser um fenómeno novo — é colocada ao mesmo nível de virtudes tão necessárias como a poupança ou a sobriedade ou madrugar ou fazer exercício.”

Mais, a leitura, para Wharton, a leitura deliberada ou volitiva, seria diferente do simples ato de ler, assim como a sabedoria e o conhecimento não devem ser confundidos ou usados como sinónimos, também os modos de ler devem ter gradações. Neste ponto, afirma que a verdadeira leitura é como respirar. A eficiência da respiração deve-se ao facto de ser natural e de não ser preciso estar constantemente a pensar nela. O leitor lê como respira. Se pensar no mérito daquilo que faz, interrompe ou suspende a virtude do ato.

Outro argumento usado por Wharton é a ideia de que a leitura é um diálogo entre autor e leitor e que se não houver um abalo qualquer naquele que lê, então terá tudo sido em vão. A leitura deve resultar numa transformação e um leitor deverá saber que aquele que abre um livro não é a mesma pessoa que o fecha. A dimensão da transformação dá-se proporcionalmente às capacidades do leitor, dentro daquilo que poderíamos considerar a potência do livro, a espessura do conteúdo.

Mas devemos ser todos leitores? Wharton diz que não e compara com a música. “Ninguém espera que sejamos todos músicos.” Neste ponto, discordo. Somos todos leitores, uns melhores outros piores, mas a nossa vida depende da nossa capacidade de ler o mundo. Somos todos músicos, uns melhores outros piores, mas o nosso sentido de ritmo, harmonia e melodia orientam-nos na vida.
Quando nos perguntam se deveríamos ser todos músicos, talvez a pergunta devesse ser se a música é importante para as nossas vidas. Ou a poesia. Há uma demagogia na pergunta, que implica uma certa maneira de ler ou ouvir. Daniel Pennac, em Como um romance, diz que ler não tem imperativo. É como o amor. Não dizemos “ama”, do mesmo modo que não devemos dizer “lê”. Deve ser um ato livre, de volição, uma espécie de encontro.

Assim, como disse Wharton, “ler não é uma virtude mas ler bem é uma arte”, resume muito bem a diferença dos que leem em relação aos que leem. Distinguir entre ambos os modos de leitura é também saber ler. Para uns o livro é um fóssil, com um conteúdo definido e isento de mais interpretações, para outros é um florescimento contínuo. Nada disto é novo, mas Wharton ilumina a questão muito bem, ainda que com possíveis reparos.

Lewis Carroll dizia que há vários tipos de alimentos para o ser humano, sendo que alguns são mais urgentes, outros menos, mas todos igualmente importantes, levando a analogia a posicionar-se como uma questão de saúde. “Haverá uma mente obesa?”, perguntava Carroll. A resposta não é clara, até porque, como dizia Virginia Woolf, um livro deve ser entendido como uma pergunta e a leitura enquanto alimento não é uma resposta a coisa nenhuma, mas a inquietação necessária a uma resposta efémera. Como se inscreve num território em que a certeza se erode, a leitura deve pertencer às atividades mais livres do ser humano e ter as mesmas características do amor, da amizade, do passeio.

Mas não devemos imaginar por isso que todos se passeiam da mesma maneira ou amam da mesma maneira. Um amante que lê o seu amor com mais sabedoria ou profundidade é um amante diferente daquele que o faz na superficialidade. Pousar um pé ou pousar um pé tem diferenças radicais. É a diferença de quem lê e de quem lê. Há muitos tipos de pegadas. Há muitos tipos de passeios.

Na verdade, comecei este texto a partir de um livro chamado Del vicio de los libros. Este começo implica uma acumulação que não é explicada, e que este vício, ao contrário de tantos outros vícios, é na verdade uma virtude. De facto, ter livros não é o mesmo do que ter dinheiro. Ter livros é como ter amigos, ter dinheiro é como ter como pagar a amigos.
Afonso Cruz

Às favas o trabalho! Vamos ler

 

Mahnaz Yazdani (Iran)

Nos primeiros começos de Brasília

Brasília é construída na linha do horizonte. – Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia, veem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. 
A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. – Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer. – Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. – Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu. – Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. – Em qualquer lugar onde se está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira. – Se eu morasse aqui, deixaria meus cabelos crescerem até o chão. – Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos, que não eram americanos nem suecos, e que faiscavam ao sol. Eram todos cegos. É por isso que em Brasília não há onde esbarrar. Os brasiliários vestiam-se de ouro branco. A raça se extinguiu porque nasciam poucos filhos. Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes, e menos filhos. Não havia em nome de que morrer. Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos; eles nada tinham a perder. Ali acenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade. Esses eram homens e mulheres menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça humana muito contemplativa. – Esperei pela noite, como quem espera pelas sombras para poder se esgueirar. Quando a noite veio, percebi com horror que era inútil: onde eu estivesse, eu seria vista. O que me apavora é: vista por quem? – Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construções com espaço calculado para as nuvens. O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é uma manchete nos jornais. – Aqui eu tenho medo. – Este grande silêncio visual que eu amo. Também a minha insônia teria criado esta paz do nunca. Também eu, como eles dois que são monges, meditaria nesse deserto. Onde não há lugar para as tentações. Mas vejo ao longe urubus sobrevoando. O que estará morrendo meu Deus? – Não chorei nenhuma vez em Brasília. Não tinha lugar. – É uma praia sem mar. – Em Brasília, não há por onde entrar, nem há por onde sair. – Mamãe, está bonito ver você em pé com esse capote branco voando (É que morri, meu filho). – Uma prisão ao ar livre. De qualquer modo não haveria para onde fugir. Pois quem foge iria provavelmente para Brasília. Prenderam-me na liberdade. Mas liberdade é só o que se conquista. Quando me dão, estão me mandando ser livre. – Todo um lado de frieza humana que eu tenho, encontro em mim aqui em Brasília, e floresce gélido, potente, força gelada da Natureza. Aqui é o lugar onde os meus crimes (não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de amor. Vou embora para os meus outros crimes, os que Deus e eu compreendemos. Mas sei que voltarei. Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. – Nunca vi nada igual no mundo. Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo de meu sonho é uma lucidez. – Pois como eu ia dizendo, Flash Gordon … – Se tirasse meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia só sairia a paisagem. – Cadê as girafas de Brasília? – Certa crispação minha, certos silêncios, fazem meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte. – É urgente. Se não for povoada, ou melhor, superpovoada, uma outra coisa vai habitá-la. E se acontecer, será tarde demais: não haverá lugar para pessoas. Elas se sentirão tacitamente expulsas. – A alma aqui não faz sombra no chão. – Nos primeiros dois dias fiquei sem fome. Tudo me parecia que ia ser comida de avião. – De noite estendi meu rosto para o silêncio. Sei que há uma hora incógnita em que o maná desce e umedece as terras de Brasília. – Por mais perto que se esteja, tudo aqui é visto de longe. Não encontrei um modo de tocar. Mas pelo menos essa vantagem a meu favor: antes de chegar aqui, eu já sabia como tocar de longe. Nunca me desesperei demais: de longe, eu tocava. Tive muito, e nem do que eu toquei, sabe. Mulher rica é assim. É Brasília pura. – A cidade de Brasília fica fora da cidade. – “Boys, boys, come here, will you, look who is coming on the street all dressed up in modernistic style. It ain’t nobody but…” (Aunt Hagar’s Blues, Ted Lewis and His Band, com Jimmy Dorsey na clarineta). – Essa beleza assustadora, esta cidade traçada no ar. Por enquanto não pode nascer samba em Brasília. – Brasília não me deixa ficar cansada. Persegue um pouco. Bem-disposta, bem-disposta, bem-disposta, sinto-me bem. E afinal sempre cultivei meu cansaço, como a minha mais rica passividade. – Tudo isso é hoje apenas. Só Deus sabe o que acontecerá com Brasília. É que o acaso aqui é abrupto. – Brasília é mal-assombrada. É o perfil imóvel de uma coisa. – De minha insônia olho pela janela do hotel às três horas da madrugada. Brasília é paisagem da insônia. Nunca adormece. – Aqui o ser orgânico não se deteriora. Petrifica-se. – Eu queria ver espalhadas por Brasília 500 mil águias do mais negro ônix. – Brasília é assexuada. – O primeiro instante de ver é como certo instante de embriaguez: os pés que não tocam na terra. – Como a gente respira fundo em Brasília. Quem respira, começa a querer. E querer, é que não pode. Não tem. Será que vai ter? É que não estou vendo onde. – Não me espantaria cruzar com árabes nas ruas. Árabes antigos e mortos. – Aqui morre minha paixão. E ganho uma lucidez que me deixa grandiosa à toa. Sou fabulosa e inútil, sou de puro ouro. E quase mediúnica. – Se há algum crime que a humanidade ainda não cometeu, esse crime novo será aqui inaugurado. E tão pouco secreto, tão bem adequado ao planalto, que ninguém jamais saberá. – Aqui é o lugar onde o espaço mais se parece com o tempo. – Tenho certeza de que aqui é o meu lugar certo. Mas é que a terra me viciou demais. Tenho maus hábitos de vida. – A erosão vai desnudar Brasília até o osso. – O ar religioso que senti desde o primeiro instante, e que neguei. Esta cidade foi conseguida pela prece. Dois homens beatificados pela solidão me criaram aqui de pé, inquieta, sozinha, a esse vento. Fazem tanta falta cavalos brancos soltos em Brasília. De noite eles seriam verdes ao luar. – Eu sei o que os dois quiseram: a lentidão e o silêncio, que também é a ideia que faço da eternidade. Os dois criaram o retrato de uma cidade eterna. – Há alguma coisa aqui que me dá medo. Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo aqui. O medo sempre me guiou para o que eu quero; e, porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo quem me tomou pela mão e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que eu amo é arriscado. – Em Brasília estão as crateras da Lua. A beleza de Brasília são as suas estátuas invisíveis.

segunda-feira, julho 26

Manhã leitora

 

Ramón García

Um punhado de ninharias

Quasimodo
O amor seria uma boa justificativa para a sua cara de sonso, se você estivesse em 1958 e tivesse vinte anos.


***

Do amor não aceitemos nada aquém de tudo.

***

Se amor não é o que te move, não te movas.

***

Se eu tivesse bigode, poderia talvez parecer mais simpático na orelha do meu livro de poesia, se eu lançasse um.

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As coisas não são como me pareciam. Eu pensava que usava as palavras, e as palavras é que me consumiam.

***

Maria amava Mabel e Mabel amava Maria. Seria só uma demonstração de amor, se não fosse um gracioso exemplo de aliteração.

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Um haicai é uma brisa que aprendeu a prender a respiração e se fingir de morta.

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Antes de se lançar como sonetista, o poeta deve arranjar um pseudônimo e contratar um bom advogado criminalista.

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É um poeta superior. Se lhe pedissem, voaria. É um poeta de antologia.

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Errar é humano, mas talvez eu não precisasse exagerar tanto.

***

O olhar guloso da condessa quando vinha com a mão certeira: me deixa ver teu passarinho.

***

Com a carteirinha, a cesta básica e outros benefícios legais, os poetas desdenharam as flores e os passarinhos e alistaram-se entre os arautos das causas sociais.
Raul Drewnick

domingo, julho 25

Domingo cheio

 


Pedaço de pau

Domingo, manhã de sol, na beira do Sena. Faço um passeio vagabundo e olho com preguiça as gravuras de um bouquiniste. Há um homem pescando, um casal a remar em uma canoa, o menino sentado no meio do barco. Há muita luz no céu, nas grandes árvores de pequenas folhas trêmulas, na água do rio. Junto de mim passa um casal de mãos dadas. O rapaz e a moça se parecem, ambos têm os olhos claros, o jeito simples, a cara mansa. Vão calados, distraídos, devem ter vindo de alguma província; dão uma ideia de sossego e felicidade tão grande. Parece que a vida será sempre essa manhã de domingo; eles terão sempre essas roupas humildes e limpas, essas mãos dadas sem desejo nem fastio, essa doçura vaga. Ficarão sempre assim, tranquilos e sem história, bem-comportados; a calçada em que andam parece estimá-los e eles estimam as árvores, a ponte, a água. São tão singelos como dizer bonjour...

À sombra de uma árvore, junto ao Pont Royal, vejo um velho gordo, em mangas de camisa; pôs uma cadeira na calçada e olha o rio, o palácio do outro lado, a mancha branca do Sacré-Coeur lá no fundo. Deve ser um burguês, um comerciante, que se dispõe a gozar da maneira mais simples o seu domingo. Passo perto dele e tenho uma surpresa: sob os cabelos despenteados a cara gorda é revolta e amarga, como a de um general mexicano que perdeu a revolução e o cavalo, ficou pobre e desacreditado. Reparo melhor: ele é cego. Está com uma camisa limpa, goza o vento leve na sombra e não vê nada dessa festa de luz que vibra em tudo. Imagino que essa luz é tanta que ele deve sentir sua vibração de algum modo, e não apenas pelo calor, alguma vaga sensação na pele, nos ouvidos, nas mãos. Talvez seja isso que ele exprima, mexendo vagamente os lábios.

Como tive vontade de dizer bonjour ao casal, tenho vontade de me sentar ao lado do cego, fazer com ele uma longa conversa preguiçosa. Falar de quê? Talvez de cavalos, cavalos de general, cavalos de carroça, cavalos de meu tio, casos simples de cavalos.

Ou quem sabe ele prefira conversar sobre frutas; provavelmente diria como eram grandes os morangos antigamente, numa chácara da infância. Também sei algumas histórias de baleias; mesmo já vi uma baleia. Todo mundo gosta de conversar sobre baleias. Hesito um segundo, e subitamente penso que se parar ou diminuir o passo, agora que estou a um metro de distância, ele voltará para mim os olhos cegos e inquietos.

- Um cego tem bem direito ao seu sossego no domingo.

Formulo esse pensamento, e uma vez que ele está mentalmente arrumado em palavras, eu o acho sólido, simples e gratuito como um pedaço de pau. Sim, há um pedaço de pau sobre o muro. Jogo-o lá embaixo, na água quase parada. Parece que joguei dentro d'água meu pensamento; fico vagamente vendo os círculos de água, com a alma tão simples e tão feliz como. . . como, não sei. Como um pedaço de pau. Um pedaço de pau repousando na manhã de domingo.

Rubem Braga. "Ai de ti Copacabana"

sábado, julho 24

Ainda existem! E resistem!

 


Os quadros

Sonja Danowski
A mim sempre me impressionou esta história dos quadros. Estão ali em cima durante anos, depois sem que aconteça nada, mas nada digo, trás, chão com eles, caem. Estão ali agarrados ao prego, ninguém lhes faz nada, mas eles a certa altura, trás, caem ao chão, que nem pedras. No silêncio mais absoluto, com tudo imóvel em redor, nem uma mosca a voar, e eles, trás. Não há nenhuma razão. Porquê logo nesse mesmo instante? Não se sabe. Trás. O que acontece a um prego para o fazer decidir que já não aguenta mais? Terá também uma alma, o pobre coitado? Toma decisões? Discutiu longamente o assunto com o quadro, estavam incertos quanto ao que havia a fazer, falavam disso todas as noites, desde há anos, e depois decidiram uma data, uma hora, um minuto, um segundo, é este, trás. Ou já o sabiam desde o princípio, os dois, estava já tudo combinado, olha eu largo tudo daqui a sete anos, por mim está bem, ok, então ficamos entendidos para o dia 13 de Maio, Ok, pelas seis, digamos seis menos um quarto, de acordo, então boa noite, b' noite. Sete anos depois, a 13 de Maio, seis menos um quarto: trás. Não se percebe. E uma daquelas coisas que é melhor não pensar nisso, senão fica-se maluco. Quando cai um quadro. Quando acordas uma manhã, e já não a amas. Quando abres o jornal e lês que rebentou a guerra. Quando vês um comboio e pensas tenho de me ir embora daqui. Quando te olhas ao espelho e reparas que estás velho. Quando, no meio do Oceano, Novecentos levantou os olhos do prato e me disse: — Em Nova Iorque, daqui a três dias, vou sair deste navio.

Alessandro Baricco, "Novecentos"

Hora do café

 


A Biblioteca Americana de Paris

Quando cheguei à Biblioteca na manhã seguinte, Miss Reeder estava sozinha na mesa da sala de leitura, debruçada sobre o jornal. Impecável como sempre, com o seu vestido de malha azul , rímel nas pestanas, batom perfeito, não deixava que os seus receios a impedissem de trabalhar.

Talvez sentindo o meu olhar, ergueu a cabeça. Na sua expressão, vi tanta coisa - preocupação, curiosidade, coragem , afeição.

- Alguém da sua família ficou ferido durante o bombardeamento? - perguntou.

- Não.

- Ótimo - Empunhou uns telegramas. - Infelizmente a minha está a suplicar-me que volte para casa.

Não os censurava. Por vezes, até eu queria ir embora dali.

- Como pode ficar?

Ela envolveu-me suavemente o rosto com as mãos.

- Porque eu acredito no poder dos livros. Fazemos um trabalho importante, garantindo que o conhecimento continua disponível e criando um sentido de comunidade. E porque tenho fé.

- Em Deus?

- Em jovens mulheres como tu e a Bitsi e a Margaret. Sei que vão endireitar o mundo.

Salão de leitura da Biblioteca Americana fundada em 1920

Os leitores do costume reuniam-se em círculos para ler as notícias. O Figaro congratulava os parisienses pelo seu sangfroid. Declarou que tinham sido lançadas mil e oitenta e quatro bombas, matando quarenta e cinco civis e ferindo cento e cinquenta e cinco. Uma fotografia mostrava um edifício bombardeando com os quartos abertos ao mundo como uma casa de bonecas.

- Todas as batalhas são "uma magnífica luta" ou uma "valorosa luta" - observou Monsieur de Nerciat.

- A cada dia que passa, há mais artigos censurados - disse a professora Cohen. - O que estarão os censores a esconder?

Mr. Pryce-Jones quis falar comigo em particular. Os seus leitosos olhos azuis estavam ensombrados de preocupação.

- Se eu tivesse um irmão, ia querer saber.

No vestiário, entre guarda-chuvas partidos e cadeiras instáveis, o diplomata reformado confiou-me que os comunicados não estavam a revelar a verdadeira história.

- Mas ... os jornais dizem que vamos vencer.

Não, disse ele. De acordo com a sua fonte na embaixada, dezenas de milhares de soldados franceses e ingleses tinham sido capturados. Em Dunquerque, os alemães tinham cercado as tropas aliadas que estavam encurraladas pelo Canal. Enfrentando ataques do inimigo, navios ingleses tinham saído para ir recolher os seus soldados. Em breve quase não restaria qualquer presença militar britânica no continente.

Afundei-me numa cadeira, incapaz de conciliar o abismo entre o que tínhamos lido e o que ele me estava a contar. Os ingleses estavam a retirar poucas semanas depois de o verdadeiro combate começar. O que aconteceria às tropas francesas? O que aconteceria ao Rémy?

- Lamento, ma grande.

- Fez bem em dizer-me. Porque não podem eles salvar os nossos soldados?

- De acordo com as minhas fontes, ajudaram todos os que conseguiram. Não se esqueça, estamos a falar de barcos de pesca e botes juntamente com os navios da marinha a tentar evacuar trezentos mil homens.

A Linha Maginot ia manter-nos a salvo. França tinha o melhor exército - não passavam de mentiras. Oh, Rémy , onde estás? Tinha assumido que, se alguma coisa lhe acontecesse, eu saberia, mas não sentia nada."
Janet Skeslien Charles, "A Biblioteca de Paris"

sexta-feira, julho 23

Aventureiro

 


A breve passagem da vida

Por vezes sentado sozinho na sala, apenas com o cão por companhia, pensava que, contrariamente ao que ele supunha, não eram precisas palavras para entendermos o essencial: que tudo é uma breve passagem e que não há outra eternidade senão a da solidão partilhada.

Ou no amor, ou na camaradagem das grandes batalhas, ou no silêncio de uma sala entre um leitor e um cão. Talvez estivéssemos a ficar parecidos e até nos imitássemos um ao outro.

Manuel Alegre, "Cão como Nós"

Noites de leitura

 


A batalha dos livros

Foi um sábio, Aristóteles de Souza. Recebera na pia batismal um nome significativo, vaticínio de encomenda dos pais, sem grave ofensa à modéstia porque vinha logo atenuar, os compromissos a restrição chué do sobrenome.

Aristóteles, entretanto, ficava sendo, embora de Souza. Dominava-o a avidez de conhecer como um vício insaciável. Tinha sede de ideias, fome de páginas; havia alguma coisa de traça no seu apetite. Oh! não lhe ser dado viver entre a compressão erudita de dois capítulos de um livro fechado, tranquilo e só, roendo, roendo as saborosas folhas.

Dormia pouco, comia menos, não bebia nada, excetuando o abuso da água do pote a que se entregava periodicamente em cristalinas orgias de asceta. Não tinha afeições pessoais, porque a aplicação o distraía de ter sentimento; detestava o bulício do mundo e a preocupação dos negócios.

Pura massa de sábio: nos livros, dos livros, para os livros.

Muito rico, confiara a direção inteira dos seus interesses a um raro procurador honrado e, alto, no platô das Paineiras, sobre os rumores da cidade e sobre as intrigas dos homens, desfrutava a sensualidade espiritual dos estudos, encerrado em um grande prédio que lá mandara construir.

Com Aristóteles, morava um sobrinho, o Sancho, rapaz amável, bem apessoado de carnes, com um ventrezinho de jovialidade cativante, pouco inteligente, falador, encarregado de receber as visitas, entretê-las com a melhor hospitalidade e despachá-las atenciosamente, antes que lhes ocorresse a ideia de ir perturbar o sábio na sua sabedoria.

Aristóteles falava raramente ao sobrinho. Não se dignava. Sancho, em compensação, venerava-o, acatando profundamente essa desdenhosa reserva como o nicho do seu ídolo. Aos criados o sábio não dirigia palavra. Gesticulava os seus desejos e era compreendido às maravilhas.

Uma vez por semana dava audiência, para quem o quisesse consultar sobre elevados motivos técnicos.

Traço complementar: era fisicamente a ressurreição magra do velho Littré.

Dos esdrúxulos portugueses seguido de um breve tratado dos adjetivos científicos derivados do grego, e vantagem do seu emprego no discurso, para o fim de dar precisão, sonoridade e prestígio às frases.

Granjeara-lhe a reputação unânime de profundo em que era tido.

Tinha publicado também uma monografia entre industrial e científica sobre as Cidades peixeiras do Brasil, ou piscicultura nacional e futuro deste ramo de aplicação da indústria humana com a continuação do tempo e o progresso da navegação. Esta segunda obra, que lhe valera um diploma de membro do Instituto Histórico, provava, jogando com as estatísticas dos mercados de peixe, que o incremento da atividade náutica fazia desaparecerem os peixes, afugentados pelo rumor das rodas e hélices dos paquetes, para regiões afastadas e mais tranquilas do oceano.

Apesar do diploma e da nomeada, Aristóteles não estava satisfeito consigo. Aclamasse-o o mundo inteiro, posteridade inclusive, aclamasse-o sábio, com hipoteca segura sobre uma dúzia de centenários glorificadores, Aristóteles, no seu bom senso, estava a contragosto, desconfiando que não passava de uma besta. Aristóteles... ora, ora! — de Souza!...

É que, de todos os seus estudos copiosos nunca lhe fora possível fazer um organismo unificado e harmonioso: o Problema da classificação dos conhecimentos escapava-lhe ao cérebro, intangível e sutil, em meio de todo aquele tumulto de noções anarquizadas, como o espírito do Senhor no caos dos primeiros dias do mundo. O espírito onipotente da síntese, obstinava-se em recusar o fiat às trevas daquela desordem.

Que desespero! Ter consciência de que sabia, de que lhe haviam entrado de enfiada no cérebro os conhecimentos matemáticos, linguísticos, históricos, geográficos, astronômicos, e a física, e a química, e a história natural, desde a investigação microscópica até ao reconhecimento hábil e prático dos mais difíceis espécimes dos três remos da natureza; conhecer descritivamente todas as filosofias, desde Aristóteles, o outro, até Aristóteles, ele mesmo, ter meditado, uma por uma, as crenças e as religiões de todos os tempos e lugares, sem falar de uma leitura completa impossível de todas as literaturas em original, desde os poemas da neve escandinava até os poemas do sol do Himalaia, que desespero ser erudito, erudito, erudito! e não poder ligar, na rapsódia de uma concepção cosmogônica do universo, tanto retalho precioso!

Os sistemas filosóficos eram engenhosos, lógicos, concatenados. Mas não serviam porque, sendo razoáveis, eram diversos! O que é múltiplo em opinião não é verdadeiro. A luz é uma só e indiscutível. Aristóteles tinha por falsos todos os princípios debatidos. E, como a filosofia é uma polêmica, lá ia ele atordoado por entre as escolas como um bêbado.

Mas ardia por ver em que ficavam os pensadores para então filiar-se em remorsos à escola unânime e universal dos perfeitos sábios. Quando chegaria para esta solução o Messias mestre?

Infelizmente, não dispunha da necessária força, ele, Aristóteles de Souza, para fazer a paz entre os princípios. Só havia talvez resignar-se a morrer, dolorosa contingência! sem conhecer o advento bendito da Luz indiscutível e única.

Para compensar a tristeza da decepção, Aristóteles atirava-se aos livros com redobrada fúria, tentando embriagar-se com a contemplação dos fatos isolados.

O cenáculo dos seus excessos de erudito esfaimado, era o templo.

Templo chamava Aristóteles à biblioteca, situada no centro da casa. Estava-se aí em um retiro de completo sossego. A luz penetrava verticalmente por uma claraboia de vidros foscos, e se dispersava, silenciosa e igual, descendo pelo lombo colorido dos volumes ao soalho tapetado, onde caía maciamente, como receando perturbar a paz absoluta do interior.

A sala era hexagonal, de uma arquitetura graciosa e opulenta. Seis estantes uniformes de madeira lavrada e fosca encobriam as paredes e cercavam o local, tocando os frisos do teto com os emblemas do estudo que as adornavam, globos terrestres, teodolitos, lunetas, tinteiros, troféus de penas e réguas artisticamente arranjados, panóplias completas dos combates do espírito, sobre alfarrábios amarrotados de páginas enormes — tudo primorosamente talhado em carvalho.

Duas portas comunicavam a biblioteca com os outros aposentos da casa. Sobre as portas desabavam amplos reposteiros da cor da madeira das estantes. A cada um dos seis ângulos, formados pelo encontro das estantes, havia uma estátua.

Quatro destas pequenas, ladeando as portas.

D. Quixote, de ponto em branco, magríssimo, sentado, espada de cavaleiro à cinta, heroico, cravando, na encadernação inofensiva dos livros do lado oposto, o desafio do olhar nobre e triste de vingador de agravos.

Hamleto, de pé, um gracioso descanso sobre um quadril, em traje ligeiro de jovem fidalgo, deixando ver até à coxa as longas meias do tempo, a mão esquerda sobre a espada, a direita fechada à altura do queixo, em gesto de fervorosa contensão meditativa.

Pela colocação da estátua, o olhar do príncipe sombrio ia direito às faces cavadas e aos longos bigodes desanimados de D. Quixote.

Fausto, o pobre filósofo, preocupado simultaneamente pela decepção espiritual e pelo amor intenso à vida, simbolizada em Margarida.

Mefistófeles, ao lado de Fausto, perseguindo-o ali mesmo na ornamentação da biblioteca, inseparável mentor das trevas, com o seu vestuário de pajem, o gorro, e a petulante pena oblíqua, e a ironia satânica.

As duas outras estátuas eram colossais. Aristóteles e Shakespeare.

As quatro primeiras descansavam sobre colunas de ferro negro, as duas últimas sobre peanhas quadrangulares de madeira pintada de branco.

Todas de bronze.

A de Aristóteles envolvia-se nas dobras simples e majestosas de um manto grego. Shakespeare trajava, segundo uma gravura muito conhecida que o representa perante a corte de Inglaterra.

O cone luminoso, baixando da claraboia, chegava em toda luz aos nomes gravados nas peanhas. O corpo das figuras desenhava-se num crepúsculo que escurecia gradualmente para o teto; a fronte delas mal se distinguia no círculo de sombra que rodeava a claraboia.

Em meio dessa sombra, como dentro de uma nuvem, percebiam-se confusamente rostos que olhavam para baixo fixamente — retratos de homens ilustres, obra rara de arte, pintados no teto sobre medalhões apensos às volutas do estuque, frondosamente distribuído para todos os lados, em torno do foco luminoso da claraboia.

No centro da sala achava-se uma grande mesa cercada de divãs.

Aí se entregava Aristóteles aos seus furores de aplicação.

Como lhe sabia o estudo, aí na calma do isolamento, não ouvindo, sequer, o murmúrio farfalhado das árvores da serra, na íntima convivência dos livros, aspirando o cheiro das encadernações novas, ou a sagrada emanação dos infólios, perfume dos séculos!

Como era agradável passar as horas absorto, com as suas obras prediletas, ferozmente excitado pela febre de conhecer; ou, por desenfado, reclinar-se em um divã e permutar olhares de inteligência com os rostos vivos do teto, Dante, Petrarca, Molière, Klopstock, Cervantes, Byron, Gutenberg, Kepler, Beethoven, Miguel Ângelo, Kant, César, Sócrates, La Fontaine, Ariosto, Hegel, Descartes, Darwin, Leão X, Spencer, cem figurões do espírito, com os quais privava o nosso sábio!

Que nobre entusiasmo lhe produziam então as estátuas! Como se entendiam bem Aristóteles e aqueles homens de bronze, que representavam a imortalidade do gênio e das obras geniais! Em êxtase de vaidade, mirando as esculturas, o sábio chegava a sentir-se digno também de uma transfiguração. Encontrava mesmo em si alguma coisa que o aproximava da natureza daquelas estátuas. O destino de um sábio é acabar estátua tarde ou cedo. No meio daquelas figuras, Aristóteles sentia-se um pouco monumento, como elas. Uma dormência estranha tomava-lhe as pernas, beribéri da glória! e ele sentia-se já metade bronze, bronze até à cintura, como aquele personagem das Mil e uma noites!

De súbito caía em si. Como pensar em estátua, um pobre diabo que não chegara a consolidar em um sistema os próprios conhecimentos, o triste sábio dos retalhos, avesso à síntese?!

Assaltavam-no assim inopinadamente dolorosos momentos de desânimo, no meio das preocupações do estudo.

Ele queria escapar à obsessão... Lã estava a síntese impassível, a rir sarcasticamente no Mefistófeles de bronze, a rir para ele, o espírito da classificação, como a zombaria da própria inépcia, fechando-lhe a estrada das aspirações!

Por mais que tentasse não foi possível a Aristóteles de Souza dominar a preocupação enferma.

A grande obra estava por fazer... Ele sentiu-se arrastado a acometê-la.

Estava perdido. Galgara a Babel do saber, e a ciência, a altura incalculável dos problemas, talhados a pique como precipícios, produzia vertigens tais ao seu espírito, que lhe fora preciso cerrar os olhos ao pensamento, para escapar ao desastre.

Bem o tentou, mas não foi possível. A ideia fixa escravizou-o. A dificuldade teimosa da solução passou a acabrunhá-lo como uma desgraça.

Até que um dia as coisas mudaram.

Ultimamente, à noite trancava-se Aristóteles na biblioteca, a meditar até muito tarde.

Certa noite, como de costume, dirigiu-se ele para o seu lugar de trabalho. A biblioteca estava fechada. Aristóteles parou à porta.

O sobrinho Sancho que, desde a hora do jantar, notava modos extraordinários no tio, viu-o espiar pela fechadura como se quisesse lobrigar alguma coisa no interior da biblioteca, coisa impossível aliás, por estar a sala sem luz e o reposteiro corrido.

Convencendo-se de que nada poderia ver, o sábio colou o ouvido ao orifício da fechadura. Esta nova observação não foi infrutífera; porque Aristóteles ali ficou um tempo imenso, curvado, dobrado, com as mãos nos joelhos, imóvel naquela auscultação absurda, como na observação tenaz do mais interessante fenômeno.

Vendo que se fazia tarde, incomodado pela insistência do sábio, o sobrinho acercou-se dele e receoso de causar desagrado perguntou muito docemente:

— Não deseja descansar, meu ti.?... Já é tarde...

O velho não ouviu; Sancho repetiu o convite.

Como se lhe disparasse dentro uma mola elétrica, Aristóteles empertigou-se bruscamente contra o sobrinho; e, rijo, teso, imperioso, formidável, apontou com a mão magra para a saída da antessala onde se achavam, rangendo entre dentes, com a voz surda e as sílabas trincadas:

— Retira-te!

Meio amedrontado, meio compadecido, o moço afastou se. Tinha certeza de que o tio era vítima de um desarranjo cerebral. Conservou-se à distância, observando-lhe a atitude.

Quase ao romper do dia, Sancho o viu retirar-se da porta da biblioteca, passar em silêncio como um espectro e recolher-se vagarosamente ao dormitório.

No dia seguinte um respeitável médico, chamado às Paineiras por Sancho, observou a repetição do estranho fato e constatou-se a loucura do sábio.

— Tanto esforço mental... explicou o facultativo com proficiência.

E um ano passou.

A loucura de Aristóteles, traduzindo-se por uma inofensiva mania, não tornara necessária a mudança do enfermo para um hospício. Limitava-se o velho a passar os dias embrutecido em um idiotismo inerte, contristador, desenvolvendo a ação da sua vontade unicamente para impedir, por meio de uma proibição assombrosamente enérgica, que se abrissem as portas da biblioteca.

À noite, invariavelmente, postava-se junto da porta do templo e levava horas e horas imóvel, extático, manifestando, na fisionomia, o gozo de um prazer imenso.

Conformados com a desgraça, o sobrinho de Aristóteles e os amigos adotaram o estado patológico do sábio como uma simples metamorfose das esquisitices do velho; e não viram, afinal, diferença nenhuma entre a nova mania de escutar à noite o silêncio da biblioteca e a antiga avidez maníaca de ciência e literatura. Dois capítulos coerentes da história vulgar de um sábio.

Em compensação, que profundíssimo desdém lhes votava Aristóteles! Espíritos rudes e escuros, não lhes era dado se quer desconfiar em que vertiginosas alturas andavam os condores do seu pensamento. E certo não valia apena comunicar-lhes as grandes coisas que lhe vibravam ao ouvido, nas preciosas horas contemplativas.

Aristóteles sentia-se engrandecer.

Um clarão novo convulsionava-lhe o cérebro como uma batalha de relâmpagos. Rebentava uma florescência de estrelas, na escuridão caótica das suas ideias. Venturosa primavera de irradiações! Era ele! era ele o predestinado!

Narrava a Bíblia o conflito meteórico dos átomos conflagrados, antes da gênese divina da Ordem. Aristóteles sentia fabulosas as dimensões do seu crânio. Dispersos, odiando-se mutuamente, cercados de uma escuridão compacta, flutuavam-lhes as ideias adquiridas nos longos labores do estudo, rebeldes a qualquer tentativa de harmonização filosófica. Repentinamente toda essa escuridão se crivara de astros cada vez mais numerosos e mais brilhantes. As células educadas do seu cérebro, outrora inimigas, sorriam umas as outras, com a chegada da luz. Havia um ano essa tendência simpática progredia em intensidade no seu espírito.

Devia ser ele Aristóteles de Souza o pregoeiro bendito da paz universal do pensamento! Era impossível que depois de tanta exacerbação mental não lhe saltasse da cabeça, a Minerva armada e invencível da sabedoria única e evidente.

Por isso ouvia no templo aquela epopeia de rumores, cada noite mais assombrosa e mais vasta.

Maravilha! Os livros que Aristóteles descera das estantes para os estudos preparatórios da confecção de um fabuloso dicionário dos conhecimentos humanos e dispersara em desordem, cobrindo o tapete da biblioteca, subindo dois palmos pelo pedestal das estátuas, todo esse mundo de volumes abriam as páginas como mandíbulas e vociferavam. Aristóteles escutava extasiado o concerto estupendo das vozes.

Clamavam as filosofias, clamavam os apostolados da crença, estertoravam os mártires. Cadenciando o vozear desordenado das opiniões ardentes, ouvia-se a palavra calma dos livros didáticos, a proferir preceitos. Os geógrafos narravam viagens; os astrônomos revelavam descobertas. Prestando bastante atenção percebia-se o desmoronar longínquo dos impérios; de momento a momento uma página repetia as palavras de Baltazar; ouvia-se caírem os dias e os acontecimentos como as folhas das árvores: era o rumo da História.
À primeira noite Aristóteles de Souza fora impressionado por um ligeiro barulho. Encostando o ouvido à fechadura, pareceu-lhe sentir um tropel desordenado de ratos, folgando na biblioteca em trevas. Continuando a escutar, o rumor avolumou-se como o brado crescente de um trovão nos espaços.

Cresceu e transformou-se, ganhou modulações, ramificou-se em tumultos parciais confundidos por fim em uma erupção incalculável de clamores, como se uma batalha estanha se empenhasse entre os capítulos e as doutrinas.

Aristóteles gozava, exultando, a inaudita impressão daquela sinfonia de vulcões a contorcer para todos os lados os tentáculos da lava rugidora e espantando o universo com o bramir anárquico das crateras.

Sobre o turbilhão das ciências, dos princípios, das opiniões e dos fatos, reinava a soberania das artes. Pareciam estranhas à tempestade inferior. As obras de arte exalavam harmonias arrebatadoras, dominando às vezes a peleja colossal dos fatos e das doutrinas. Inteira bonança, lá em cima. As estrofes serenas pairavam na altura, como garças sobre o oceano revolto.

Às vezes um artista descia, destacando-se da suprema placidez; então baixava como um arcanjo vingador, esgrimindo um estardalhaço de raios e reerguia-se à eminência, deixando a desolação no torvelinho das opiniões, das tiranias, ou das vergonhas.

Esta contemplação estupenda acabrunhava Aristóteles. Não era impunemente que ele fruía esta audição de assombros. Cada vez que saboreava o seu estranho deleite, uma prostração mais pesada obrigava a procurar o leito.

Mas entregava-se a acessos de furor, se alguém tentava dissuadi-lo da fatigante penitência que se impusera.

Um belo dia, a debilidade não permitiu mais que ele se fosse postar no seu observatório do costume. O velho sábio implorou com lágrimas de desespero que o carregassem até à porta do templo.

Arranjaram-lhe aí uma cadeira confortável e Aristóteles ainda uma vez pôde chegar até o seu querido posto de observação.

Entretanto o sobrinho, um médico e alguns amigos presentes não viram mais acender-se o olhar do sábio como nas noites de entusiasmo. Ele colou o ouvido à fechadura, mas uma expressão dolorida de desapontamento foi o único rito que lhe agitou a face.

Voltou para a cama mais abatido do que nunca. Com o olhar fixo e morto, os lábios entreabertos e os membros abandonados em contristadora flacidez passou ele o dia seguinte. Embalde lhe foram proporcionados excitantes, Aristóteles parecia extinguir-se de uma vez irremissivelmente.

À noite levaram-no carregado até à porta da biblioteca. Este recurso extremo foi sem resultado. O templo, dias antes, povoado pelo rumor incrível da batalha dos livros, estava silencioso agora. Tristíssimo silêncio.

— Ah! exclamou Aristóteles em um hausto de agonia, agitando a cabeça que lhe tombava em abandono para o peito. Nada mais ouço! nada, nada mais!...

A voz fraquíssima saía como soluços.

Poucos momentos depois, ali mesmo na cadeira expirou, abraçado com o sobrinho, que o cobria de lágrimas.

Expirou, coitado! quando provavelmente ia resolver o grande problema da paz das escolas. Porque não era crível que, de tão luminosa febre cerebral, não explodisse a verdade decisiva, mediadora eficaz do conflito dos espíritos.

Quando, depois das cerimônias fúnebres, abriram-se as portas da biblioteca, que por mais de um ano jazera trancada, encontraram-se os livros em miserável estado. Uma turma diligente de ratos devastara a livraria. Meia dúzia de volumes, se tanto, haviam escapado à sanha dos roedores.

Pobre Aristóteles! Não lhe sobreviveram os queridos livros!

Lá estavam esparsos, fragmentados, pulverizados, desfeitos, os seus companheiros de cinquenta anos de trabalho.

Lá estavam os seus problemas aos pedaços, as suas teorias, feitas poeira de papel roído!

Lá estavam aos montes, conspurcados e miserandos, os destroços do vigor cerebral dos homens e da sabedoria dos séculos.

Sobre aquela devastação erguiam-se inalteráveis as estátuas com a mesma expressão que lhes dera o escultor à face de bronze, Hamlet, tenebroso e irônico, Fausto meditativo e preocupado, D. Quixote a fitar bravamente as estantes vazias, Mefistófeles, de riso cruel, e as figuras colossais do Filósofo e do Poeta, com a fronte perdida no escuro do alto, em meio da ramagem florestal do estuque e dos retratos admiráveis de grandes homens.
Raul Pompéia