sábado, julho 3

Três registros

O Gesto

Estava com o lado esquerdo todo paralisado, a fala comprometida. Alimentava-se por sonda. Talvez fosse irreversível seu estado. Rezava por ele. “Se tivesse alta do hospital, provavelmente irá para uma clínica”, pensou.

Requeria cuidados, durante 24 horas por dia.

Foi visitá-lo no hospital e ficou muito sensibilizada. Não entendeu nada do que ele falou. Ele pegou sua mão e deu um beijo. Era como se despedia dela. Agradecia todos os momentos que habitara com ela, envoltos na alegria e na tristeza.

Voltou para casa sabe como… Lamentou daí a instante quando soube que ele acabara de falecer. Em lugar da máscara, a pele enrugada cobrindo o rosto ossudo, levava uma expressão serena, assinalada pelo gesto que fez quando lhe beijou a mão. Deixava assim para ela uma saudade formada de afeição e entendimento nos momentos que viveram juntos.

Durante sessenta anos de casados. O tempo havia ofertado a eles cinco filhos e quinze netos.

O Espetáculo

De repente o menino se fez homem.
De repente o homem se fez idoso.
De repente o idoso se fez velhinho.
As cortinas fecharam-se.
Não mais que de repente.

Presente

O pai disse que ia lhe dar um grande presente.

Estava fazendo cinco anos no domingo.

– Pai, é esse o mar?

– É

– De quem é, pai?

– É seu.

O mar rugia sem parar. A água molhava seus pés pequenos.

Na poça que se formou ali perto, encheu de água o balde de plástico.

Ficou cavando com a pá a areia.

O vento soprava nos cabelos.

Aquele marzão era todo seu.

De contente sorriu.

Um sorriso do tamanho do mar.
Cyro de Mattos

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