Eduard Swoboda |
Walter era uma criança esperta que não se empenhava muito nos estudos. Um dia, a sua vida mudou radicalmente. O pai abandonou-o e aos irmãos, deixando a mãe com três rapazes para cuidar. Como o Estado não fornecia qualquer tipo de apoio a mães trabalhadoras, a mãe de Walter trabalhava em vários lugares a fim de assegurar o sustento dos filhos. À medida que as férias grandes se aproximavam, começou a preocupar-se com os perigos a que os filhos estariam sujeitos ao vaguear pelas ruas enquanto ela trabalhava.
Walter foi trabalhar numa quinta, onde deparou com um patrão severo. Frequentemente castigado, o seu local de expiação era um velho sótão. Nesse sótão, Walter encontrou vários livros velhos que o dono da quinta também lá tinha exilado: Dickens, Austen, Twain e Stevenson tornam-se companhias permanentes e desejadas. Walter fazia com que o patrão o castigasse frequentemente, de forma a poder estar com os seus livros adorados.
Há algo de tão evocativo na imagem da criança só, incompreendida, desprezada, que vários escritores de ficção resolveram fazer dela personagens suas. Talvez a mais conhecida seja Sara Crewe, de Frances Hogdson Burnett, no livro A Little Princess. Embora muitas das realidades que Burnett descreve sejam reprováveis – a fortuna de Sara provém de minas onde gente miserável é obrigada a trabalhar em condições degradantes e Becky é salva no fim para se tornar, não numa amiga de Sara, mas na sua criada pessoal – há, contudo, uma ideia que importa reter no livro.
Quando Sara é enviada para o sótão por Miss Minchin, a diretora da escola onde ela estudava, por já não ser herdeira de uma grande fortuna, Sara tira partido da sua imaginação fértil e constrói um mundo onde imagina ser uma princesa prisioneira de uma tirana, o que a vai ajudar a lidar com as vicissitudes a que está sujeita.
Um livro pode ajudar uma criança a autovalorizar-se e isso é o início de um processo de crescimento da alma (por isso, sou contra a ideia de personagens-modelo, nas quais a criança não se reconhece). E há tantas crianças entre nós que estão fechadas em sótãos que as aterrorizam…. Os livros podem ser e são a chave que abre essas portas fechadas.
Regressemos agora à história de Walter. Quando voltou para a cidade, Walter não se tornou um aluno mais diligente. Contudo, levou consigo uma avidez de leitura que fez com que se candidatasse à universidade e acabasse por se licenciar em Harvard. Os mundos que a leitura abrira para ele expandiram a sua mente e o seu coração, como nada antes o havia feito. Tornou‑se um empresário bem-sucedido e um marido, pai e avô dedicado.
Os livros salvaram-lhe a vida.
Suponhamos que não havia livros no sótão para o qual Walter foi enviado. Se coloco esta hipótese é porque, hoje em dia ainda, há muitas crianças cujas vidas são difíceis, cujos espíritos estão sedentos, que estão isoladas, com medo e que não têm livros.
Muitas pessoas do sector do governo e da educação acreditam que se lhes proporcionarem uma ligação à Internet estão a contribuir para aliviar as suas múltiplas fomes… Mas, quando os jovens se comportam agressivamente na escola e são expulsos, isso só os conduz a um isolamento maior.
Justamente quando estão mais vulneráveis e isolados, vão para uma casa, tantas vezes vazia, passar o tempo a ver jogos de vídeo violentos ou a navegar na Internet. Com quem é que eles estabelecem relações? As mais das vezes fazem-no com indivíduos que têm uma autoestima tão baixa quanto a deles e que, assim, ajudam a perpetuar todos os seus receios e ódios.
O acesso à Internet não é a solução para estas “crianças no sótão” e nem sequer os bons livros são já suficientes. Do que eles precisam é de vós, professores, adultos dedicados e atentos. Para mim, a coisa mais importante do mundo é que o verbo se torne carne. Posso escrever histórias para crianças e oferecer-lhes palavras, mas os professores são a palavra encarnada dentro da sala de aula. Ao preocuparem-se com elas e ao mostrarem-lhes essa preocupação, os professores partilham com as crianças e os jovens o que eu também quero partilhar quando escrevo.
Quero dizer a cada criança no sótão que se sente só, triste, zangada e com medo, que não está sozinha nem é desprezível. É um ser único e tem um valor infinito no seio da família humana que todos formamos. Posso dizer isto através de uma história, mas os professores dizem-no através da sua própria presença. E dos livros que incentivam a ler!
Katherine Paterson, "The Invisible Child," (Tradução e adaptação)
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