sexta-feira, janeiro 14

Lembranças de Dona Vanna, da livraria Leonardo Da Vinci

No dia 9 de janeiro de 2003 estreei como colunista no Segundo Caderno. Foi um momento muito significativo para mim. Na época, os leitores me conheciam sobretudo como jornalista de tecnologia; eu precisava convencê-los de que tinha também um lado unplugged, sem tomada. Optei por escrever sobre o que sempre esteve mais perto do meu coração: livros, livrarias e, sobretudo, uma livreira em especial, dona Vanna Piraccini, que nos deixou no último domingo, um outro dia 9 de janeiro; e falei das sensações conflitantes que senti quando comprei os primeiros livros on-line.

As impressões daquela primeira compra vivem até hoje em mim. De um lado, o assombro com a internet e com a vastidão do mundo de livros (e de dívidas em moeda forte) que se abria à minha frente; de outro, mais pungente, a sensação de estar traindo dona Vanna Piraccini, a minha querida livreira da Leonardo Da Vinci, onde, até aquele momento, sempre comprara os livros importados.


Eu pressentia que estava entrando por um caminho sem volta, e não conseguia deixar de pensar na horrível ingratidão que cometia, em parte por comodismo, em parte por economia, mas muito pelo frisson daquele ato ainda mágico de conjurar um livro do além por meio de meia dúzia de comandos e um simples cartão de crédito.

A minha relação com a Leonardo Da Vinci era, claro, uma relação especial. Dona Vanna era amiga dos meus pais e, quando eu era jovem, muitas vezes aceitou encomendas minhas que sabia que eu jamais poderia pagar — livros que eu levava para casa, um de cada vez, com o compromisso solene de ler sem quebrar a lombada. Assim, por exemplo, li toda a correspondência entre Vincent van Gogh e seu irmão Theo, nos quatro volumes de uma edição francesa que custava o equivalente a dois meses do que eu conseguia ganhar.

Se alguém quis comprar aquela coleção enquanto eu estava com um dos volumes, não sei; mas sei que não fui a única protegida da dona Vanna. Tempos depois, quando já ganhava o suficiente para poder gastar tudo em livros, andei atrás de uma coletânea de discursos de Churchill, que havia visto por ali.

— Esquece este livro — disse dona Vanna. — Ele está sendo lido.

Ah, que bom, então outras pessoas que conseguiam ler sem quebrar a lombada continuavam a tradição?

— Imagina, você acha que eu sou uma biblioteca?! Não, este menino vem aqui toda tarde, senta num canto, lê horas a fio e, antes de ir embora, esconde o livro numa estante diferente. Só põe de volta no lugar certo quando acaba — e este ele começou a ler agora. Tem quase mil páginas. Volta daqui a dois meses.

Que espécie de ser sem entranhas seria capaz de comprar livros on-line tendo uma livreira como a dona Vanna? Se todos se deixassem seduzir pelas facilidades do comércio eletrônico, o que seria das livrarias? E — horror dos horrores — o que seria do mundo sem as livrarias?!

Uma livraria é mais do que um monte de livros juntos: é um cardume de ideias, um ponto de encontro, um ser vivo como outro qualquer, com suas idiossincrasias, seu charme, seu cheiro. Uma livraria é, sobretudo, um discreto monumento à civilização, um local onde podemos nos certificar, permanentemente, de que, apesar dos pesares, temos feito algum progresso como espécie. Coisa que, olhando assim pela televisão, ninguém diz.
Cora Rónai

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