Todo mundo sabe que não existe precisão nem apuro na supressão; se você corta uma coisa, acaba amputando o que está ao lado.
Meus próprios pais não foram tão importantes assim para mim, embora eu gostasse da minha mãe. Era uma pessoa simplória, e o que aprendi com ela não foi o que ela me ensinou, mas algo mais na ordem dos exemplos concretos. Ela não tinha muito para ensinar, coitada. Meus irmãos e eu a amávamos. Falo pelos dois; no caso do mais velho, não há muito risco de erro; no caso do mais novo, Georgie, tenho de responder por ele — Georgie nasceu retardado —, mas não preciso adivinhar seus sentimentos, pois ele tinha uma musiquinha que costumava cantar enquanto corria de um lado para o outro, manquejando com seu trote rígido de retardado, ao longo da cerca de arame farpado do quintal:
Georgie Machy, Augie, Simey
Winnie Machy, tudo, tudo ama a mamãe.
Ele tinha razão com relação a todos, menos Winnie, a poodle da vovó Lausch, uma cadela velha, gorda e ofegante. Minha mãe era tão criada de Winnie quanto era de vovó Lausch. Respirando ruidosamente e soltando gases a torto e a direito, a cadela passava os dias deitada numa almofada bordada com o desenho de um berbere apontando um rifle para um leão, ao lado do banco em que a velha apoiava os pés. Era exclusivamente de vovó, fazia parte do séquito dela; o resto de nós éramos os súditos, principalmente mamãe. Minha mãe entregava o prato de Winnie para a vovó, e a cadela recebia sua comida aos pés da velha, das mãos da velha. Esses pés e mãos eram pequenos; vovó usava meias de um tipo enrugado de malha nas pernas e seus chinelos eram cinza — ah, o cinza daquele feltro, um cinza despótico para almas — com laços de fita cor-de-rosa. Já mamãe tinha pés grandes e, dentro de casa, usava sapatos de homem, geralmente sem cadarço, e uma espécie de touca que mais parecia uma esdrúxula escultura de algodão em formato de cérebro. Ela era dócil e comprida e tinha olhos redondos como os de Georgie — ternos olhos verdes redondos e uma suave cor de vitalidade no rosto comprido. Tinha as mãos vermelhas de tanto trabalhar, só lhe restavam poucos dentes na boca — para receber as bordoadas que vinham — e usava os mesmos casacos de tricô desfiados que Simon. Além de ter olhos redondos, mamãe usava óculos redondos, obtidos em incursões ao dispensário da Harrison Street que eu fazia junto com ela. Ensaiado por vovó Lausch, eu ia para contar as mentiras. Sei agora que mentir não era tão necessário assim, mas na época todo mundo achava que era, principalmente vovó Lausch, que era um daqueles maquiavéis de subúrbio que tanto povoaram meus tempos de garoto. Então vovó, que preparava tudo antes de sairmos de casa e devia passar horas maquinando a coisa toda em pensamentos e frases, encolhida no seu quartinho gelado debaixo do edredom de pena, me passava as instruções no café da manhã. A ideia era que mamãe não tinha esperteza o bastante para fazer a coisa direito. A hipótese de que talvez não fosse preciso ser esperto não passava pela nossa cabeça; era uma disputa, afinal. O dispensário ia querer saber por que as instituições de caridade não pagavam pelos óculos. Então eu não podia falar nada sobre as instituições de caridade, mas apenas que o dinheiro que meu pai mandava às vezes chegava e às vezes não, e que mamãe alugava quartos para hóspedes. Isso tudo era, de uma forma delicada e seletiva, ignorando e omitindo certos fatos importantes, verdade. Era verdadeiro o bastante para eles e, aos nove anos de idade, eu era capaz de entender isso perfeitamente. Melhor do que meu irmão Simon, que era franco demais para esse tipo de manobra e que, de qualquer forma, tinha adquirido nos livros umas noções de honra típicas de colegiais ingleses. Por muitos anos, Tom Brown’s Schooldays* teve uma influência lá em casa que nós não tínhamos condições de bancar.
* "Os Dias Escolares de Tom Brown", romance de 1857 de Thomas Hughes.
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