domingo, janeiro 9

Mesma época , mesma cidade

Capital Federal, única cidade brasileira com mais de 1 milhão de habitantes, gente por toda parte dia e noite, prédios altos e com elevador, ruas iluminadas, carros, bondes, saias curtas, domingos de praia e um grau de barulho, velocidade e atrevimento com que as províncias nem sonhavam. Esse era o Rio de Janeiro entre o Carnaval de 1919 e a Revolução de 1930. Foi o cenário que descrevi em meu livro Metrópole à beira-mar: O Rio moderno dos anos 20, lançado em 2019. O Rio era a meca, a moenda, o bruaá. A cidade nacional — e internacional.

As vozes da metrópole se concentra na ferramenta que a fazia girar: a palavra impressa. Numa época em que o cinema, o fonógrafo e o rádio ainda estavam de gatinhas, a palavra era a condutora das ideias e das paixões. E parecia onipresente, nas redações que soltavam uma infinidade de jornais; nas livrarias e nos sebos, onde todas as correntes se cruzavam; nas editoras e oficinas gráficas, cujas máquinas não paravam e onde não havia graxa que chegasse; nas instituições oficiais, como as academias de letras, os gabinetes de leitura e as bibliotecas; e nos sonhos dos aspirantes à glória literária, que desembarcavam na metrópole com uma carta para um figurão e um livro de poemas a publicar. O Brasil que saía dos cafundós entrava pela Galeria Cruzeiro e desembocava na Avenida — como se chamava a avenida Rio Branco —, onde se decidiam todos os destinos. 

Em Metrópole à beira-mar, narrei as peripécias de uma geração de escritores e jornalistas — poetas, cronistas, repórteres, romancistas e provocadores, que tomaram seus espaços e lutaram pelo que tinham a apresentar. Era um tempo de tremendas transformações na tecnologia, no pensamento e nos costumes. Eles eram jovens, ambiciosos e tudo lhes interessava. Muitos se identificaram de tal modo com aquele tempo que ficaram prisioneiros dele e, por isso, invisíveis para a posteridade. 

A maioria dos 41 autores reunidos nesta antologia, famosos e/ou admirados na década de 20, está fora de catálogo, fora de circulação e fora de moda há quase cem anos. Não é o caso, evidentemente, de João do Rio, Lima Barreto e Murilo Mendes, cuja presença na literatura brasileira, depois de estabelecida, nunca mais se abalou. Nem de Julia Lopes de Almeida e Gilka Machado, que voltam a ganhar agora merecido reconhecimento, embora continuem sub-representadas em volume editorial. E ninguém mais discute a importância de Ismael Nery na pintura, embora sua poesia, bissexta segundo Manuel Bandeira, continue um banquete para poucos. Todos os demais autores neste livro foram sendo progressivamente eclipsados, alguns até o apagamento absoluto — como se a literatura brasileira pudesse passar sem eles. 

Alvaro Moreyra, Adelino Magalhães, Orestes Barbosa, Ribeiro Couto e Patrocinio Filho, potências daquela época, só não estão soterrados de vez porque cada qual teve um título reeditado pela prefeitura e pelo governo do estado do Rio nos anos 90, hoje só disponível em sebos. Benjamim Costallat, Théo-Filho, Carmen Dolores, Chrysanthème, Mendes Fradique, Elysio de Carvalho e Antonio Torres também voltaram de relance à praça com um único livro cada um, por pequenas e bravas editoras, e sumiram de novo. Dante Milano e Mario Pederneiras tiveram sua poesia reunida em boas edições da Academia, mas de alcance reduzido. E Romeu de Avellar precisou que a Imprensa Oficial de seu estado, Alagoas, propiciasse o relançamento de sua obra, incluindo o raríssimo romance Os devassos. 

Compreende-se que autores fugidios e de obra curta, como Duque-Costa, Albertina Bertha, Moacyr de Almeida, Mercedes Dantas, Pedro Motta Lima e Paulo Silveira, tenham desaparecido das livrarias. E Oswald Beresford, claro, é um caso à parte — pelas extraordinárias circunstâncias de sua vida, não surpreende que só agora se descubra que ele existiu. Mas, considerando-se a enormidade do que representaram em vida, não se explica que Augusto Frederico Schmidt, Agrippino Grieco, Ronald de Carvalho, Murillo Araujo, Felippe d’Oliveira, Olegario Marianno, Gastão Cruls, Peregrino Junior, Graça Aranha e Gilberto Amado também tenham sido banidos das prateleiras. 

Esta antologia tenta trazer de volta essa turma, mesmo que a conta-gotas. Os textos reproduzidos aqui, digitados por mim e por Heloisa Seixas, foram selecionados da leitura de sua obra quase completa — para isso nos serviram os dez meses de quarentena de 2020, de março a dezembro — e extraídos, quase todos, das primeiras edições de seus livros, descobertas em sebos e leilões. As poucas alterações a que procedemos se deveram à atualização ortográfica, à conversão em redondo do itálico (hoje desnecessário) na maioria das palavras estrangeiras e a uma ou outra supressão de referências só compreensíveis em seu tempo. 

O leitor se surpreenderá com esses textos e descobrirá que, desde 1920, o Brasil tinha um escrete de escritores afiados na observação de sua época e que já escreviam brilhantemente em brasileiro, em todos os estilos correntes e em outros que, a partir dos anos 20, seriam caracterizados como “modernistas” (embora os autores do Rio, modestamente, fossem apenas modernos). 

O fascinante, no entanto, é a variedade de assuntos de que tratavam. Ao contrário de seus colegas de outras praças, obcecados pela destruição do soneto e dos pronomes bem colocados, esses autores estavam atentos ao entorno: os conflitos sociais e políticos, as comédias e os dramas pessoais e humanos, as liças da inteligência. E, sem dispensarem o humor e a leveza que são as marcas do Rio, enxergavam a floresta, a árvore e a folha. Mais informações sobre eles estão no capítulo “Os autores, um por um”, no fim deste livro. 

Para mim, há algo de mágico na ideia de que esses homens e mulheres viveram numa mesma época e cidade, o Rio, cruzando- -se nas esquinas, esbarrando-se nas livrarias e, suprema intimidade, a centímetros uns dos outros numa estante ou página de jornal.
Ruy Castro

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