quarta-feira, janeiro 12

As instruções

Instruções para chorar

Deixando de lado os motivos, vamos nos ater à maneira correcta de chorar, entendendo isso como um pranto que não se transforma em escândalo, nem que insulte o sorriso com sua paralela e lerda semelhança. O choro médio ou ordinário consiste numa contração geral do rosto e num som espasmódico, acompanhado de lágrimas e fungação, esse último no final, pois o choro acaba no momento em que alguém assoa o nariz energicamente.

Para chorar, dirija a sua imaginação para si mesmo e se isto acabar sendo impossível pelo hábito adquirido de acreditar num mundo exterior, pense num pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de Magalhães onde ninguém entra, nunca.

Chegando o choro, tapar o rosto com decoro usando ambas as mãos com a palma voltada para dentro. As crianças chorarão com a manga do casaco contra o rosto e, de preferência, num canto do quarto. Duração média do choro, três minutos.

Instruções para cantar

Comece quebrando os espelhos de sua casa, deixe os braços caírem, olhe vagamente para a parede, esqueça. Cante apenas uma nota, escute por dentro. Se ouvir (mas isso ocorrerá muito depois) algo como uma paisagem desaparecida no medo, com fogueiras entre pedras, com silhuetas seminuas de cócoras, acredito que estará bem encaminhado, assim como se ouvir um rio por onde descem botes pintados de amarelo e preto, se ouvir um gosto de pão, um toque de dedos, uma sombra de cavalo.

Depois, compre cadernos de solfejos e um fraque, por favor não cante pelo nariz, e deixe Schumann em paz.


Instruções-exemplos sobre a forma de sentir medo

Numa aldeia da Escócia vendem-se livros com uma página em branco perdida em algum lugar do volume. Se o leitor desembocar nessa página ao soarem as três da tarde, morre.

Na praça do Quirinal, em Roma, há um lugar conhecido pelos iniciados até o século XIX e do qual, em noites de lua cheia, vêem-se mexer lentamente as estátuas dos Dióscuros que lutam com seus cavalos empinados. Em Amalfi, no fim da zona costeira, há um dique que penetra pelo mar e pela noite. Ouve-se um cão latir para além do último farol. Um senhor está pondo pasta de dentes na escova. De repente, vê, deitada de costas, uma diminuta imagem de mulher, feita de coral ou talvez de miolo de pão pintado.

Ao abrir o armário para apanhar uma camisa, cai um antigo calendário que se desmancha, se desfolha, cobre a roupa branca com milhares de sujas traças de papel.

Sabe-se de um caixeiro-viajante que começou a sentir dor no pulso esquerdo, justo debaixo do relógio de pulso. Ao arrancar o relógio, o sangue jorrou: a ferida mostrava os sinais de uns dentes muito finos.

O médico acaba de nos examinar e nos tranquiliza. A sua voz grave e cordial precede os remédios, cuja receita ele escreve agora sentado à mesa. De vez em quando levanta a cabeça e sorri, animando-nos. Não é nada demais e daqui a uma semana estaremos passando bem. Refestelamo-nos no sofá, felizes, e olhamos distraidamente em volta. De repente, na penumbra debaixo da mesa, vemos as pernas do médico. Ele arregaçou as calças até as coxas e veste meias de mulher.

Preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio

Pensa nisto: quando te oferecem um relógio oferecem-te um pequeno inferno florido, uma prisão de rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, muitos parabéns, que te dure muitos e bons, é uma óptima marca, suíço com não sei quantos rubis; não te oferecem somente esse pequeno pedreiro que prenderás ao pulso e passearás contigo. Oferecem-te – ignoram-no, é terrível ignorá-lo – um novo bocado frágil e precário de ti mesmo, algo que é teu mas não é o teu corpo, que tens de prender ao teu corpo com uma correia como um bracito desesperado pendente do pulso. Oferecem-te a necessidade de lhe dar corda todos os dias, a obrigação de dar corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de ver as horas certas nas montras das joalharias, o sinal horário na rádio, o serviço telefónico. Oferecem-te o medo de o perder, de seres roubado, de que caia no chão e se parta. Oferecem-te uma marca, a convicção que é uma marca superior às outras, oferecem-te a tentação de comparares o teu com os outros relógios. Não te oferecem um relógio, és tu o oferecido, a ti oferecem para o nascimento do relógio.
Julio Cortázar, "Histórias de cronópios e de famas",

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