No início de março de 2020 entrei numa barbearia em Lisboa para aparar o cabelo. A pandemia estava no início, não havia um único morto em Portugal, quase ninguém usava máscaras, e a palavra confinamento só tinha algum uso em pecuária.
O barbeiro, um carioca de meia-idade, alto e musculoso, queixou-se do inverno, queixou-se do alto custo de vida, queixou-se do mau humor dos lisboetas, e eu fui concordando com ele, melancolicamente, até que tive a infeliz ideia de lhe perguntar o que pensava sobre a situação política no Brasil. O barbeiro começou por dizer que havia sido policial, e no minuto seguinte estava elogiando Bolsonaro.
Muitas vezes me tenho deixado levar pela polêmica, não porque seja corajoso, que não sou — mas somente pelo embriagante prazer de discordar. Já me aconteceu até discutir com assaltantes. Com um barbeiro — enquanto este me golpeava o cabelo —, foi a primeira e a última vez que discuti. Desaconselho totalmente. É mais seguro praticar parkour, rafting ou jet ski.
Abandonei a barbearia com o pescoço intacto, mas com o orgulho e o cabelo (o que me restava dele), numa irremediável desordem. De certa forma, o meu cabelo foi uma das primeiras vítimas do bolsonarismo.
Em casa, olhando-me ao espelho, pensei em raspar o desastre com uma lâmina. Depois, lembrei-me que já fizera isso uns dez anos antes, com resultados muitíssimo constrangedores. Não sei se já viram uma coruja sem penas (podem googlar). Uma coruja sem penas não é exatamente uma coruja, aquela entidade sólida, orgulhosa e invencível diante da qual toda a vida estremece. Uma coruja sem penas é uma anticoruja. Eu, de cabeça inteiramente raspada, fico bastante parecido com uma coruja sem penas. Assim, tendo desistido de raspar a cabeça, fui a uma loja de chapéus e comprei todas as boinas disponíveis.
Neste ínterim, vieram os confinamentos e o meu cabelo foi crescendo, crescendo e crescendo. Infelizmente, não cresce com idêntico vigor em todo o crânio. Há zonas onde nem sequer cresce, o que explica o comentário do meu filho quando me reencontrou ao fim de quase dois anos de pandemia: “Nunca vi um careca com tanto cabelo!”
Desde que o meu cabelo começou a ficar ralo, passei a achar os outros homens excessivamente cabeludos. Podem chamar-lhe autoestima; ou podem chamar-lhe de negação. Olhando fotografias antigas, estranho a minha própria cabeleira, uma massa compacta e selvagem, onde nenhum pente conseguia entrar. Estou agora na situação em que uma parte do meu crânio é quase um deserto, e a outra insiste no vigor juvenil de outrora. O cabelo que esse fragmento juvenil produz, e que desisti de pentear há meses, extravasa das boinas como um tsunami. Visto de trás sou o Bob Marley; visto de frente sou o Bruce Willis.
Bem sei, deveria voltar ao barbeiro. Acontece que, entretanto, prometi a mim próprio só cortar o cabelo depois que o vírus se fosse embora. Paciência. Já faltou mais. A dois de outubro eu corto.
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