Sei que entrego minha idade, pois é fato que, se comprei (ou pelo menos paguei) naquele dia, meus cabelos pretos de hoje não passam de mero truque. Mas, a verdade deve ser dita, doa no cabelo que doer: o papel ganhou um tom amarelado. Recibo de número 107.452, pela compra feita no cartão de fidelização número 0833, CUS1079, como pagamento da quantia de dezenove mil e quinhentos cruzeiros. Emitido pela Livro 7 Empreendimentos Culturais Ltda., CGC número 11.302.643/0001.
A agenda onde o recibo se encontrava é um volume branco, com capa estilo “clean”, projeto gráfico de autoria de Rejane Vieira Pinto, coordenação editorial de Jaci Bezerra, revisão de Evaldo Donato e Rômulo Freire. Tem 13,5 centímetros de largura e 21 de altura. Era brinde que a Livro 7, então a maior livraria do Brasil, distribuía entre clientes. Tratava-se de um objeto de desejo disputado por artistas, intelectuais, escritores e jornalistas. Eu a ganhei e repassei como mimo para a minha irmã.
No verso de cada página, um poema ou crônica de pernambucanos: Paulo Cavalcanti, Maximiano Campos, Raimundo Carrero, Tereza Tenório, Lucila Nogueira, Paulo Gustavo, Celina de Holanda, Gilvan Lemos, César Leal, entre outros. Há, inclusive, ilustrações, uma do tipo arte-xerox, de Paulo Brusky. Uma pequena apresentação afirma que aquela é a terceira edição de uma “agenda/antologia” e apresenta os agradecimentos do dono da livraria, José Tarcísio (7) Pereira. Escrito bem assim, com o numeral.
Tarcísio Pereira recebendo Sidney Sheldon |
Essa é outra sincronicidade. Ou coincidência. Ou probabilidade de acasos. Ou tipo de ocorrência que pressupõe uma ação recíproca entre os mundos material e não-material. Até porque hoje é véspera do primeiro aniversário de morte de Tarcísio, o grande livreiro que, por três décadas, conduziu um empreendimento que faz parte da memória afetiva de diversas gerações. Uma livraria diferente, que dinamizou a cultura local quando o breu da história política parecia não ter fim.
Tarcísio Pereira morreu no dia 25 de janeiro do ano passado, com 73 anos, depois de lutar durante 60 dias contra as complicações da covid-19. Ele era natural do Rio Grande do Norte, mas viveu quase toda a vida no Recife. Foi na Livro 7 que realizou grandes lançamentos, seminários, encontros literários. Debates com Gilberto Freyre, Osman Lins, Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto. Fez lançamentos de arrasar quarteirões como o de Sidney Sheldon e o de Eduardo Galeano. Pelo acervo da loja, foi parar no Guinness Book. A Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe a Medalha do Mérito Cultural pela Divulgação da Literatura.
Tarcísio construiu um lugar onde se lia, se ouvia, se debatia, se sonhava. Frequentar a Livro 7 não era apenas ir a uma livraria, mas ter uma atitude política, um posicionamento em favor da cultura. A Livro 7 era um espaço de convivência, ponto de ligação de gerações de artistas e intelectuais, um território quase sagrado, de construções simbólicas, lugar para onde confluíam pessoas de diversas áreas. Livraria boa de frevo, que tinha até bloco de carnaval, o Nóis Sofre Mas Nóis Goza, cuja porta-estandarte era a amiga, e grande jornalista, Letícia Lins.
Haverá quem diga que as coincidências não existem, que elas são apenas a ocorrência de dois ou mais fatos ao mesmo tempo. E aqui, há duas: o encontro da agenda da Livro 7 no mesmo dia do recibo de há 37 anos; e há uma semana antes do aniversário de morte do dono do empreendimento. Data que se completa às vésperas da publicação desta crônica. Já que os significados, em geral, somos nós quem atribuímos, prefiro deixar que a emoção denomine essa energia que nos conecta. Tarcísio, presente!
Cícero Belmar
Nenhum comentário:
Postar um comentário