sábado, janeiro 8

Assim começa...

O homem chama‑se artur paz semedo e trabalha há quase vinte anos nos serviços de faturação de arma‑ mento ligeiro e munições de uma histórica fábrica de armamento conhecida pela razão social de produções belona s.a., nome que, convém aclarar, pois já são pouquíssimas as pessoas que se interessam por estes saberes inúteis, era o da deusa romana da guerra. Nada mais apropriado, reconheça‑se. Outras fábricas, mastodônticos impérios industriais armamentistas de peso mundial, se chamarão krupp ou thyssen, mas esta produções belona s.a. goza de um prestígio único, esse que lhe advém da antiguidade, baste dizer‑se que, na opinião abalizada de alguns peritos na matéria, certos petrechos militares romanos que encontramos em museus, escudos, couraças, capacetes, pontas de lanças e gládios, tiveram a sua origem numa modesta forja do trastevere 10 que, segundo foi voz corrente na época, havia sido estabelecida em roma pela mesmíssima deusa. Ainda não há muito tempo, um artigo publicado numa revista de arqueologia militar ia ao ponto de defender que alguns recém‑descobertos restos de uma funda balear provinham dessa mítica forja, tese que logo seria rebatida por outras autoridades científicas que alegaram que, em tão remotos tempos, a temível arma de arremesso a que se deu o nome de funda balear ou catapulta ainda não havia sido inventada. A quem isso possa interessar, este artur paz semedo não é nem solteiro, nem casado, nem divorciado, nem viúvo, está simplesmente separado da mulher, não porque ele assim o tivesse querido, mas por decisão dela, que, sendo militante pacifista convicta, acabou por não suportar mais tempo ver‑se ligada pelos laços da obrigada convivência doméstica e do dever conjugal a um faturador de uma empresa produtora de armas. Questão de coerência, simplesmente, tinha explicado ela então. A mesma coerência que já a havia levado a mudar de nome, pois, tendo sido batiza‑ da como berta, que era o nome da avó materna, passou a chamar‑se oficialmente felícia para não ter de carregar toda a vida com a alusão direta ao canhão ferroviário alemão que ficou célebre na primeira guerra mundial por bombardear paris de uma distância de cento e vinte quilómetros. Voltando a artur paz semedo, há que dizer que o grande sonho da sua vida profissional é vir a ser nomeado responsável pela faturação de uma das secções de armas pesadas em vez da miuçalha das munições para material ligeiro que tem sido, até agora, a sua 11 quase exclusiva área de trabalho. Os efeitos psicológicos desta entranhada e não satisfeita ambição intensificam‑se até à ansiedade nas ocasiões em que a administração da fábrica apresenta novos modelos e leva os empregados a visitar o campo de provas, herança de uma época em que o alcance das armas era muito menor e agora impraticável para qualquer exercício de tiro. Contemplar aquelas reluzentes peças de artilharia de variados calibres, aqueles canhões antiaéreos, aquelas metralhadoras pesadas, aqueles morteiros de goela aberta para o céu, aqueles torpedos, aquelas cargas de profundidade, aquelas lançadeiras de mísseis do tipo órgão de estaline, era o maior prazer que a vida lhe po‑ dia oferecer. Notava‑se a ausência de tanques no catálogo da fábrica, mas era já público que se estava preparando a entrada de produções belona s.a. no mercado respectivo com um modelo inspirado no merkava do exército de israel. Não podiam ter escolhido melhor, que o digam os palestinos. Tantas e tão fortes emoções quase faziam perder o conhecimento ao nosso homem. À beira do delíquio, pelo menos assim o cria ele, balbuciava, Água, por favor, deem‑me água, e a água sempre aparecia, pois os colegas já iam de sobreaviso e imediatamente lhe acudiam. Aquilo era mais uma questão de nervos que outra coisa, artur paz semedo nunca chegou a desfalecer por completo. Como se está vendo, o sujei‑ to em questão é um interessante exemplo das contradições entre o querer e o poder. Amante apaixonado das armas de fogo, jamais disparou um tiro, não é sequer caçador de fim de semana, e o exército, perante as suas 12 evidentes carências físicas, não o quis nas fileiras. Se não trabalhasse na fábrica de armamento, o mais certo é que ainda hoje estivesse a viver, sem outras aspirações, com a sua pacifista felícia. Não se pense, no entanto, que se trata de um homem infeliz, amargado, desgosto‑ so da vida. Pelo contrário. A estreia de um filme de guerra provoca‑lhe um alvoroço quase infantil, é certo que nunca perfeitamente compensado, pois a ele tudo quanto vê lhe parece pouco, sejam rajadas de metralha‑ dora, combates corpo a corpo, bombas arrasa‑quarteirões, tanques disparando e esmagando tudo o que encontram pelo caminho, e até mesmo algum exemplar fuzilamento de desertores. Em verdade, perante o convulso e tumultuoso ecrã, com a aparelhagem sonora subida ao máximo de decibéis, artur paz semedo é, pelo menos em espírito, com perdão da contradição em termos, a perfeita encarnação da deusa belona. Quando não há filmes bélicos em exibição nos cinemas, recorre à sua variada coleção de vídeos, a qual vai do antigo ao recente, sendo a joia do conjunto a grande parada de mil novecentos e trinta, com john gilbert, o galã de bigodinho a quem o sonoro arruinou a carreira, pois a voz dele era aguda, quase esganiçada, a modo de mau tenor ligeiro de opereta, nada própria de um herói de quem se espera que levante um batalhão das trincheiras só com gritar Ao ataque. A maior parte dos filmes da coleção são norte‑americanos, embora haja também alguns franceses, japoneses e russos, como é o caso, respectivamente, de a grande ilusão, de ran e do couraçado potemkine. Ainda assim, a produção de hollywood é 14 maioritária na coleção, onde saltam à vista, por exemplo, títulos como apocalypse now, o dia mais longo, para além da linha vermelha, os canhões de navarone, cartas de ywo jima, a batalha de midway, rumo a tóquio, patton, pearl harbour, a batalha das ardenas, à procura do soldado ryan, a jaqueta metálica. Um autêntico curso de estado‑maior. 

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