quarta-feira, agosto 10

Olha quanto livro

Por que nos lembramos mais das primeiras frases e das aberturas dos romances que da outra extremidade? Será porque os escritores tendem a caprichar mais na entrada e relaxam na saída? Ou porque passamos mais vezes pela abertura de um livro (quando o folheamos na livraria, quando iniciamos sua leitura, quando o relemos) do que por seu desfecho? Ou porque as aberturas costumam ser mais concisas, logo, mais memoráveis?

Não exclua nenhuma dessas hipóteses. Nem esta: porque mesmo empolgado pelo promissor exórdio de um relato, às vezes o abandonamos no meio do trajeto, e assim ficamos sem conhecer (ou só superficialmente conhecemos) seu epílogo.


Finnegans Wake, de James Joyce, é caso raro: a quase totalidade dos que se aventuraram a desbravá-lo sabe como ele começa com o neologismo "riverrun") e termina com o artigo definido "the", sem ponto final), mas não faz ideia de como o rio corre entre esses dois vocábulos. Melhor sorte teve o joyciano Grande Sertão: Veredas, lido integralmente de um polo lexical ("nonada") ao outro ("travessia").

Num concurso com as mais notáveis aberturas da ficção, Anna Karenina, Moby Dick, Um Conto de Duas Cidades, A Metamorfose, Orgulho e Preconceito, Memórias do Subterrâneo talvez se revelassem imbatíveis, possivelmente acossadas por O Estrangeiro, Lolita, e o primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido (sim, aquele em que o narrador confessa que há bastante tempo tem ido dormir mais cedo). Mas de suas derradeiras palavras só leitores muito devotos Eminudentes hão de se lembrar.

Afora as obras citadas, tenho, como qualquer um, alguns xodós pessoais, como os começos da recordista Carson McCullers (em especial o de Reflexos num Olho Dourado: "Uma base militar em tempos de paz é Um lugar tedioso"), ode TheGo-Between, de L.P. Hartley ("O passado é um país estrangeiro: lá as pessoas se comportam de outra maneira") e o de O Mundo Segundo Garp, de John Irving ("A mãe de Garp, Jenny Fields, foi presa em Boston em 1942 por ferir um homem dentro de um cinema"). Como resistir a tão intrigantes introduções? Como não se interessar pelo turbilhão prometido para a base militar de McCullers e pelo que aconteceu a Jenny Fields e seu filho?

García Márquez é um mestre na arte de seduzir o leitor logo na primeira linha. Não se utiliza de palavras isoladas ou frases impactantes. Cem Anos de Solidão começa com a vítima de um fuzilamento relembrando a tarde remota em que seu pai o apresentou ao gelo. Não mais de 20 palavras, praticamente o mesmo número com que nos introduz ao dia em Que Santiago Nasar acordou cedinho para esperar o bispo e as facadas dos irmãos Vicário em Crônica da Morte Anunciada. Suas narrativas não chegam trôpegas ao final. Aliás, perder o fôlego no meio do trajeto e concluí-lo com certa frouxidão não é defeito exclusivo escritores de (sem trocadilho) segunda linha - vide Stendhal.

George Orwell não era um Stendhal, mas abriu e fechou 1984 magistralmente, comum dia frio e luminoso de abril, descrito em poucas palavras, eu e uma revelação ("Winston amava o Grande Irmão"). Cujo sentido trágico ó quem até ali chega pode sacar. Eis a maior limitação dos desfechos literários: sua compreensão plena geralmente exige o conhecimento de detalhes e nuanças do relato que os precede. A mais recente exceção à regra quem e vem à cabeça é a "tormenta de merda" com que Roberto Bolaño fecha Noturno do Chile, arremate expressivo até para quem desconhece que a novela tem como pano de fundo a ditadura do general Pinochet.

Não é difícil entender por que a maioria dos escritores tende a investir mais na tentativa de pegar o leitor pelo colarinho na primeira frase do que surpreendê-lo na última. Além de mais fácil, proporciona uma empatia imediata com o leitor. Impossível não se amarrar de cara no destino dos personagens de uma tragédia introduzida com observação como esta "Todas as famílias felizes e parecem entre si. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira". Ou esta: "Sou um homem doente... sou mau". Ou esta: "Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos".
Sempre que escrevia um romance, William Thackeray tinha gana de pedir a um amigo que lhe terminasse o último capítulo, tamanha a sua dificuldade para finalizar uma história. Não foi um caso isolado, o que explica por que determinados clássicos da literatura acabam mal, flácidos, como se tivessem sido concluídos por outro autor, de qualidade inferior. E.M. Forster achava que quase todos os romances terminam de forma decepcionante por culpa da sujeição dos autores à "necessidade de arredondar" a trajetória de seus personagens, quando deveriam parar tudo no momento em que se sentissem vazios de ideias ou entediados.

Indiferente a arranques chamativos, Machado de Assis reservou uma de suas tiradas mais conhecidas ("Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria") para o final de Memórias Póstumas de Brás Cubas. O desfecho de Ulisses, com a orgásmica anáfora de Molly Bloom, dizendo sim, sim, sim, ficou mais gravado na memória coletiva do que qualquer outra passagem do Bloomsday, e até hoje é parafraseado por bons e maus romancistas. A Trama do Casamento, de Jeffrey Eugenides, aqui traduzido há quase dois anos, termina com a protagonista de olhos semicerrados, a dizer "sim" para um dos homens de sua vida. Sua abertura ("Para começar, olha quanto livro") não reverencia nenhum escritor em particular, mas, à parte ser também memorável, presta uma sempre bem-vinda homenagem ao objeto que nestas páginas jamais tiramos do pedestal.
Sérgio Augusto

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