De onde vem Bahetá? Dos confins, ao lado do vento, da irmã água, que útil se arrasta no leito, preciosa, humilde e casta, como nos fala São Francisco de Assis. O rosto de Bahetá conserva uma expressão triste. Rugas são sulcos que ardem e por onde uma tinta vermelha imprime, às ocultas, uma mancha que não sai e envergonha. Talhos nos prados da memória, em Ngahã, o rio, aquele que lá estava antes que ali aparecesse um dos pataxós.
Os antepassados de Bahetá conviviam aqui com a natureza, num clima marcado pelo relógio natural dos dias. As caravelas lusitanas ainda não haviam desembarcado por aqui. As rações eram iguais, a água jorrava da fonte da vida clara para todos. Criaturas humanas, seres e coisas andavam num relacionamento perfeito, de entendimento e equilíbrio, nos hábitos da terra eram aprendidos ritos de passagem e modulações da seiva imemorial. A flauta dos ancestrais de Bahetá ainda não tocava a música que fala dos rastros da desgraça deixados pelo homem branco, descobridor e aventureiro.
Já em criança Bahetá teve de aprender a tocar uma música triste, escorrendo num tom doído lembranças da flecha quebrada na fuga em grito. Melodia nada doce que repercute a bala na taba e o gume na seiva. Recorda o coração ilhado em sombras, trazendo o som de certa avidez desmedida, incrível capacidade de persistência que extinguiu até os bichos. Fez aflorar o jugo dos colonos e a mão permanente do posseiro, soterrando valores, tradições milenares, em dó e lágrima, até o último gemido.
O povo pataxó passou a ter condições mínimas para juntar restos de sua cultura a partir de 1980. Tarefa difícil por ser fragmentária a de recuperar a sua identidade. Alguns restos dessa identidade que se perdeu no tempo foram reunidos agora na cartilha Lições de Bahetá. Nesse pequeno livro estão registradas cento e vinte e nove palavras e duas orações, como Apôka (chorar), Kuin Kahab (quero comer) e Kuin Mikahab (quero viver).
Os herdeiros do povo pataxó vão ter o que aprender nessas breves lições de Bahetá. Ao rastrearem sua língua de modo fragmentário, pulsando através dela com alegria e dor, canto e silêncio, água e fogo, pedra e vento, árvore e flor, nuvem e bicho, em seus rumores milenares vão viajar com as noites e descobrir os dias.
Nesse reencontro com vozes perdidas, atravessando lugares e conhecendo coisas trazidas pela língua nativa, vão ficar mais conscientes quanto à retomada e preservação vital que a natureza destinou-lhes neste planeta.
Os herdeiros do povo pataxó vão ser mais livres e dignos com as breves lições da velha senhora. Sem dúvida terão mais consciência do que é ser Mikahabe (chão), Itôhã (céu) e Hãhãhãe (povo). E de querer ser índio.
Cyro de Mattos
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