domingo, agosto 14

Índia velha

O rosto na pele enrugada mostra que Bahetá é uma senhora de idade avançada. Provavelmente anda perto dos cem anos de idade, muitos deles vividos sob o açoite inclemente do tempo aqui neste planeta tantas vezes agredido pela mão do homem colonizador. Bahetá é a única criatura que fala a língua de seu povo, os pataxós que vivem hoje em condições precárias na Reserva Paraguaçu-Caramuru, no sul da Bahia. Sofrimento e extermínio são marcas profundas na memória dessa tribo, como em geral de outros grupos nativos que tiveram desempenho destacado na formação do perfil cultural do Brasil.

De onde vem Bahetá? Dos confins, ao lado do vento, da irmã água, que útil se arrasta no leito, preciosa, humilde e casta, como nos fala São Francisco de Assis. O rosto de Bahetá conserva uma expressão triste. Rugas são sulcos que ardem e por onde uma tinta vermelha imprime, às ocultas, uma mancha que não sai e envergonha. Talhos nos prados da memória, em Ngahã, o rio, aquele que lá estava antes que ali aparecesse um dos pataxós.


Os antepassados de Bahetá conviviam aqui com a natureza, num clima marcado pelo relógio natural dos dias. As caravelas lusitanas ainda não haviam desembarcado por aqui. As rações eram iguais, a água jorrava da fonte da vida clara para todos. Criaturas humanas, seres e coisas andavam num relacionamento perfeito, de entendimento e equilíbrio, nos hábitos da terra eram aprendidos ritos de passagem e modulações da seiva imemorial. A flauta dos ancestrais de Bahetá ainda não tocava a música que fala dos rastros da desgraça deixados pelo homem branco, descobridor e aventureiro.

Já em criança Bahetá teve de aprender a tocar uma música triste, escorrendo num tom doído lembranças da flecha quebrada na fuga em grito. Melodia nada doce que repercute a bala na taba e o gume na seiva. Recorda o coração ilhado em sombras, trazendo o som de certa avidez desmedida, incrível capacidade de persistência que extinguiu até os bichos. Fez aflorar o jugo dos colonos e a mão permanente do posseiro, soterrando valores, tradições milenares, em dó e lágrima, até o último gemido.

O povo pataxó passou a ter condições mínimas para juntar restos de sua cultura a partir de 1980. Tarefa difícil por ser fragmentária a de recuperar a sua identidade. Alguns restos dessa identidade que se perdeu no tempo foram reunidos agora na cartilha Lições de Bahetá. Nesse pequeno livro estão registradas cento e vinte e nove palavras e duas orações, como Apôka (chorar), Kuin Kahab (quero comer) e Kuin Mikahab (quero viver).

Os herdeiros do povo pataxó vão ter o que aprender nessas breves lições de Bahetá. Ao rastrearem sua língua de modo fragmentário, pulsando através dela com alegria e dor, canto e silêncio, água e fogo, pedra e vento, árvore e flor, nuvem e bicho, em seus rumores milenares vão viajar com as noites e descobrir os dias.

Nesse reencontro com vozes perdidas, atravessando lugares e conhecendo coisas trazidas pela língua nativa, vão ficar mais conscientes quanto à retomada e preservação vital que a natureza destinou-lhes neste planeta.

Os herdeiros do povo pataxó vão ser mais livres e dignos com as breves lições da velha senhora. Sem dúvida terão mais consciência do que é ser Mikahabe (chão), Itôhã (céu) e Hãhãhãe (povo). E de querer ser índio.
Cyro de Mattos

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