Não me lembro de muita coisa do conto. Era sobre um menino bombainense de dez anos de idade que um dia se vê no começo de um arco-íris, um lugar tão ilusório quanto qualquer final com pote de ouro e igualmente tão promissor. O arco-íris é largo, tão largo quanto uma calçada, e construído como uma escadaria grandiosa. Naturalmente, o menino começa a subir. Esqueci quase todas as suas aventuras, exceto um encontro com uma pianola falante cuja personalidade era um improvável híbrido de Judy Garland, Elvis Presley e os “cantores de fundo” dos filmes indianos, muitos dos quais faziam O Mágico de Oz parecer realismo de vida cotidiana.
Minha fraca memória — que minha mãe chamava de “esqueçória” — é, provavelmente, uma bênção. Enfim, me lembro do que é importante. Lembro que O Mágico de Oz (o filme, não o livro, que não li em criança) foi minha primeiríssima influência literária. Mais que isso: lembro que quando foi mencionada a possibilidade de eu ir para a escola na Inglaterra, isso me soou tão excitante quanto qualquer viagem além do arco-íris. A Inglaterra parecia uma perspectiva tão maravilhosa quanto Oz.
O mágico, porém, estava bem ali, em Bombaim. Meu pai, Anis Ahmed Rushdie, era um pai mágico para filhos jovens, mas tendia também a ter explosões, ataques de raiva trovejantes, relâmpagos de faíscas emocionais, baforadas de fumaça de dragão e outras ameaças do tipo das também praticadas por Oz, o grande e terrível, o primeiro Mago De Luxe. E quando a cortina se abriu e nós, seus filhos em crescimento, descobrimos (como Dorothy) a verdade sobre a impostura adulta, foi fácil para nós pensar, como ela, que nosso homem devia ser um homem muito mau mesmo. Levei metade da vida para entender que a grande apologia pro vita sua do Grande Oz cabia igualmente bem para meu pai; que ele também era um homem bom, mas um mago muito ruim.
Salman Rushdie, "Cruze esta linha"
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