Em lugar de honra da minha casa, na sala de visitas, para que todos soubessem, estavam a Encyclopaedia, a Biblioteca Internacional de Obras Célebres, o atlas francês. Mais o mapa da Europa, coberto de alfinetes. Mas o pai encontrou recursos para fazer uma assinatura de uma coleção de livros que chegavam mensalmente. Eram brochuras horríveis, em papel jornal. As páginas vinham dobradas. A gente tinha de ir lendo com uma faca na mão, para abrir as páginas, o que me irritava. Eram os clássicos da literatura: Guy de Maupassant, Émile Zola, Flaubert, Camilo Castelo Branco, José de Alencar. Lembro-me do prazer que me deu a leitura de Tartarin de Tarascon (Alphonse Daudet, 1872), um tipo parecido com dom Quixote, aventureiro, que vivia se metendo com trapalhadas hilariantes. Lendo a correspondência de Albert Schweitzer, há alguns anos, encontrei uma carta em que ele se referia às risadas que dava quando uma tia lhe lia o dito livro.
Que doideira me fez ler todos aqueles livros? Li e esqueci. A única exceção é o Tartarin de Tarascon. Se me perguntarem qual é a estória do livro Amor de perdição de Camilo Castelo Branco, tenho de confessar: não sei. Será que os livros são como as pessoas que amamos sem entender? É possível.
Meu amor pelos livros começou com o Jeca Tatuzinho, que decorei. Depois foi a figura do Robinson Crusoé, olhando apavorado para as pegadas na areia. Depois foi “O melro”. Depois foram as figuras das locomotivas, na Encyclopaedia. Depois foi a Astolfina nos lendo Histórias do arco da velha. Depois foi o Livro de Lili. Foi nele que aprendi a ler, com a dona Clotilde. Decorei a primeira lição. No alto da página, a figura de uma menina, a Lili. “Olhem para mim. Eu me chamo Lili. Eu comi muito doce. Vocês gostam de doce? Eu gosto tanto de doce.” Depois a estória da loja de brinquedos, as bonecas adormecidas nas caixas. Depois foram as aulas de leitura. Delícia pura. Aula que aguardávamos com ansiedade. A professora lia para nós. Viagem ao céu, As caçadas de Pedrinho, As reinações de Narizinho, O Saci, Heidi, Poliana... Ficávamos em silêncio absoluto. Não havia provas. A leitura era só prazer. Eu tinha inveja da professora, que sabia ler tão bem. Que bom seria se lêssemos como ela! Se lêssemos como ela, poderíamos levar o prazer da leitura para casa.
Havia uma coleção de livros que eu cobiçava: O tesouro da juventude. Quem tinha o tesouro da juventude era a dona Lilisa, aquela que ganhou 250 gramas de açúcar. Quando a visitávamos, eu deixava os adultos conversando na sala de visitas e ia ler o Tesouro. Era um tipo de enciclopédia onde se encontrava de tudo. Um bufê de prazeres. Em qualquer página que se abrisse lá se encontrava um assombro. Mas era muito caro. Meu pai não podia. Nunca tive o Tesouro. Como nunca tive nem velocípede nem bicicleta. Até hoje não sei andar de bicicleta.
Quem sabe, diz: “É só montar e sair pedalando”. Eu sei fazer isso. De qualquer forma, andar de bicicleta para mim é como montar um cavalo bravo. Nunca sei que ideias ela tem, nunca sei o que ela vai fazer comigo. Agora é tarde demais para aprender. Não posso tomar o risco de quebrar a bacia... Mas se eu encontrar um O tesouro da juventude num sebo eu compro, embora tudo o que está lá deva estar ultrapassado. Compro para realizar um desejo infantil. Mas, se encontrar uma bicicleta, eu não compro.
Rubem Alves, "O velho que acordou menino"
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