quinta-feira, agosto 25

A vida no céu

(Voar: esforço de desmemória que consiste em extrair da mente todo o peso do real.)


Voar. Ah, voar!

Nascemos sem asas, mas com a capacidade de as sonhar. Existem tantas lendas antigas sobre homens voadores quantos balões há no céu. Sonhadores – pessoas com a cabeça nas nuvens, como se dizia antigamente, antes de andarmos todos realmente com a cabeça entre as nuvens – costumam ver melhor o que está para vir. Quanto mais alto estivermos, quanto mais sonharmos, mais longe vemos.
Os primeiros homens a voar num balão talvez tenham sido os índios Nazcas, do Peru, ainda antes do nascimento de Jesus Cristo. Sabe-se isto porque se encontrou um vaso antigo, em barro, representando um balão de ar quente com dois tripulantes. Em 1975, um grupo de pesquisadores baseou-se no referido objeto para construir um balão, confecionado a partir de fibras de plantas conhecidas dos Nazcas. O balão conseguiu erguer-se no ar. Os gigantescos desenhos de animais nos planaltos de Nazca, só visíveis do céu – antes do Dilúvio, claro –, teriam sido produzidos por estes índios voadores. Enquanto os índios de Nazca exploravam o céu, em balões de ar quente, os chineses voavam em enormes papagaios de papel. Foi o famoso general Han Xin, que serviu o imperador Gaozu, duzentos anos antes de Cristo, quem teve a ideia de prender soldados a papagaios de papel. Han Xin servia-se dos soldados voadores para observar o movimento dos exércitos. Estes soldados cantavam, enquanto sobrevoavam as tropas inimigas. Cantavam cantigas de escárnio. Troçavam, lá do alto, dos combatentes inimigos.


Han Xin tinha um filho com sete anos de idade, Han-Li, o qual era capaz de ficar horas, fascinado, a observar o voo dos pássaros. Han-Li ficou ainda mais fascinado com os soldados-papagaios. Durante meses importunou o pai para que o deixasse voar. Finalmente, Han Xin aquiesceu. O menino foi amarrado ao papagaio mais belo de todos, uma enorme libélula em tons de vermelho, e largado no ar. Um súbito golpe de vento rompeu o fio que o prendia ao chão, e o papagaio desapareceu no azul profundo. Han-Li voou durante dias e noites, sorvendo a água das nuvens e alimentando-se do que os pássaros lhe traziam. Atravessou muitos céus, sobrevoando terras estranhas e o abismo dos mares, até a libélula embater de encontro a uma nuvem, maior e mais sólida do que qualquer outra que Han-Li vira antes. Embater é como quem diz – o papagaio rasgou a nuvem, sem ruído, detendo-se ao fim de uns dez metros, meio de borco, com a quilha quebrada. O rapaz desamarrou-se e saltou para a nuvem. Os pés afundaram-se na fofa brancura incandescente. Experimentou dar alguns passos. Era como se caminhasse sobre flocos de algodão, o que não o espantou. Espantara-o, até àquele dia, isso sim, que as nuvens não tivessem a consistência do algodão. Caminhou a manhã inteira. Encontrou, finalmente, uma aldeia habitada por uma tribo de homens minúsculos, de cabeça grande, que comunicavam uns com os outros através de gargalhadas. Viveu naquela nuvem, com os nefelibatas, durante vinte e dois anos. Ao fim desse tempo, tendo aprendido o alegre idioma deles (ou seja, tendo aprendido a rir como eles), bem como muitos dos seus segredos, incluindo a navegação aérea, com recurso a asas feitas de nuvens prensadas, regressou à China. Ali descobriu, com horror, que toda a sua família fora assassinada por ordem da malvada imperatriz Lu Zhi. Han-Li viveu o resto dos seus dias na pele de um sábio vagabundo, circulando de aldeia em aldeia, aprendendo e ensinando. Alguns dos seus ensinamentos foram reunidos num tratado de alquimia, Segredos dos Nefelibatas. O original perdeu-se. Ao longo dos séculos, contudo, foram sendo produzidas diversas cópias, todas um pouco diferentes umas das outras. Sobrou uma única, guardada em Luanda, na nossa biblioteca, que fizemos traduzir para diversas línguas.

Na Europa, os primeiros balões de ar quente a erguerem-se no ar, na presença de testemunhas, terão sido os do padre brasileiro Bartolomeu de Gusmão, em 1709. Os modelos desenvolvidos por Bartolomeu de Gusmão eram demasiado pequenos para carregarem um homem. Alguns incendiaram-se logo. Outros conseguiram cumprir um curto voo. O rei português D. João V, que assistiu às primeiras experiências, em Lisboa, não ficou entusiasmado. O invento pareceu-lhe imprestável e perigoso. Se o monarca português fosse um sonhador – se tivesse a capacidade de ver ao longe – investindo no desbravamento do céu, tanto quanto investiu na paixão por freirinhas ou na colonização do Brasil, a história da aviação teria sido outra. Foi necessário aguardar até 1783 para que dois irmãos franceses, Joseph e Etienne Montgolfier, se erguessem num balão até quase dois quilômetros de altura. Vieram depois os balões dirigíveis, ou seja, balões cujo voo podia ser controlado, avançando nesta ou naquela direção, inclusive contra o vento, graças ao poder dos seus motores.

Em 1928, surgiu o primeiro dos grandes dirigíveis, o LZ 127 Graf Zeppelin, com duzentos e treze metros de comprimento, cinco motores, e capaz de transportar vinte e quatro passageiros e trinta e seis tripulantes. Foi a primeira aeronave a circundar a terra, percorrendo trinta e três mil quilômetros em sete etapas. Ao longo da sua carreira, até 1937, o Graf Zeppelin atravessou mais de quinhentos mil quilômetros de céu, transportando um total de dezassete mil passageiros. O seu irmão mais novo, o LZ 129 Hindenburg era, para a época, um elegante milagre de luxo e de tecnologia. Media duzentos e quarenta e cinco metros de comprimento, quarenta e um metros e meio de diâmetro, e era capaz de percorrer catorze mil quilômetros, sem repouso, a uma velocidade de cento e trinta e cinco quilômetros por hora. Podia transportar até cinquenta passageiros e sessenta e um tripulantes, tudo isto sustentado por duzentos mil metros cúbicos de hidrogénio. A sala de jantar tinha janelas oblíquas, de forma que os passageiros pudessem apreciar a paisagem, lá em baixo, enquanto comiam, bebiam e conversavam.

Na noite de seis de maio de 1937, quando se preparava para atracar na base naval de Lakehurst, em Nova Jérsia, nos Estados Unidos, um enorme incêndio deflagrou de repente, lançando toda a estrutura ao solo e matando trinta e seis pessoas, entre passageiros, técnicos e tripulantes. A tragédia interrompeu, durante longos anos, o reinado dos grandes dirigíveis. Decorreu quase um século até que as empresas de aviação se voltassem a interessar pelos aeróstatos, como uma alternativa mais barata, e infinitamente mais encantadora, às rápidas e impessoais viagens de avião.

No início da década de vinte do nosso século, o designer francês Jean-Marie Massaud apresentou o projeto de um hotel flutuante, o Manned Cloud, que se revelou um enorme sucesso. O primeiro Manned Cloud, com o formato de uma enorme baleia branca, incluía uma biblioteca e um spa e tinha capacidade para receber quarenta hóspedes. Hoje, a Manned Cloud é a maior rede de hotéis do céu, com mais de cinquenta unidades. Estes hotéis são utilizados pelos habitantes ricos das grandes cidades, que ali vão relaxar – “mudar de céu”, como dizem –, mas servem também para albergar convenções de dirigentes políticos e eventos comerciais.

Quando aconteceu o Dilúvio já pairavam no céu todo o tipo de balões e dirigíveis. Mais importante, a humanidade dispunha de tecnologia para a construção de aparelhos muitíssimo maiores. O Paris, por exemplo, mede dez vezes mais do que o LZ 129 Hindenburg. Não é tão rápido, claro, nem precisa. As cidades aéreas não foram construídas para competirem umas com as outras em velocidade, e sim para transportarem o maior número possível de pessoas com comodidade. Elas competem umas com as outras em luxo e população.

Houve tempo, à medida que o mar galgava a terra, de construir alguns milhares de arcas voadoras, dezenas de enormes fábricas flutuantes de hélio e de hidrogênio, e plataformas para a exploração de petróleo. Centenas de pessoas trabalham para assegurar o funcionamento e a manutenção dessas fábricas e plataformas, lá em baixo, em condições bastante difíceis. São empregos perigosos, mas muito bem pagos.
José Eduardo Agualusa, "A Vida no Céu"

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