Pareceu-me singular que eu tivesse podido passar tantas vezes ao lado daquele prestigioso covil sem descobrir-lhe a entrada. Reinava ali uma atmosfera esquisita, capitosa, que fazia esquecer quase instantaneamente todos os fastidiosos horrores da vida. Respirava-se uma beatitude sombria, análoga à que deveriam experimentar os comedores de lótus quando, desembarcando numa ilha encantada, iluminada pelos clarões de uma tarde eterna, experimentavam intimamente, aos sons embaladores das melodiosas cascatas, o desejo de jamais rever os seus penates, as suas mulheres, os seus filhos, e de jamais remontar sobre as altas vagas do mar.
Havia ali rostos estranhos de homens e mulheres, marcados por uma beleza fatal, que eu tinha a impressão de já ter visto em épocas e em países dos quais não podia lembrar-me exatamente, e que me inspiravam antes uma simpatia fraternal do que o medo que ordinariamente inspira a visão do desconhecido. Se eu quisesse tentar definir de algum modo a expressão singular dos seus olhares, diria que jamais vi olhos que brilhassem mais energicamente pelo horror do tédio e pelo desejo imortal pela liberdade.
Quando nos sentamos, meu hospedeiro e eu já éramos velhos e perfeitos amigos.
Comemos, bebemos à farta de todas as qualidades de vinhos extraordinários, e, coisa não menos extraordinária, parecia-me, depois de várias horas, que eu não estava mais embriagado do que ele. O jogo, esse prazer sobre-humano, cortara em diversos intervalos as nossas frequentes libações, e devo dizer que jogara e perdera minha alma, em parte ligada, com uma despreocupação e uma intrepidez heroicas. A alma é uma coisa tão imponderável, tão inútil às vezes, e outras vezes tão enfadonha, que eu só experimentei, quanto à sua perda, um pouco menos de emoção do que se tivesse perdido, num passeio, o meu cartão de visitas.
Fumamos longamente alguns charutos, cujo sabor e perfume incomparáveis davam à alma a nostalgia de regiões e felicidades desconhecidas. Foi embriagado por todas essas delícias que, num acesso de familiaridade que não me pareceu desagradar-lhe, ousei exclamar, apoderando-me de uma taça cheia até a borda: — À sua imortal saúde, velho Bode! Conversamos também sobre o universo, sua criação e sua destruição futura; sobre a grande ideia do século, isto é, o progresso e a perfectibilidade, e, em geral, sobre todas as formas de enfatuamento humano. A esse respeito, Sua Alteza de detinha em pilhérias ligeiras e irrefutáveis, mas exprimia-se com uma suavidade de dicção e uma tranquilidade de humor que eu não encontrei em nenhum dos mais célebres conversadores da humanidade. Explicou-me o absurdo das diferentes filosofias que até então se haviam apoderado do cérebro humano, e dignou-se mesmo de me fazer confidência de alguns princípios fundamentais cujos benefícios e propriedade não me convém partilhar com quem quer que seja. Não se lastimou de modo algum da má reputação que possui em todas as partes do mundo, assegurou-me que era a pessoa mais interessada na destruição da superstição e me confessou que, relativamente ao seu poder, só tivera medo uma vez, no dia em que ouvira um pregador, mais sutil do que os seus confrades, exclamar do púlpito: — Meus caros irmãos, quando ouvirdes gabar o progresso das luzes, nunca vos esqueçais de que o mais belo ardil do diabo consiste em persuadir-vos de que ele não existe! A lembrança desse célebre orador levou-nos naturalmente a falar das academias, e o meu estranho conviva afirmou-me que não desdenhava, em muitos casos, de inspirar a pena, e palavra e a consciência dos pedagogos, e que quase sempre assistia em pessoa, embora invisível, a todas as sessões acadêmicas.
Encorajado por tantas bondades, pedi-lhe notícias de Deus e perguntei-lhe se o vira recentemente. E ele me respondeu com uma despreocupação laivada de certa tristeza: — Nós nos cumprimentamos quando nos encontramos, mas como dois fidalgos em que uma polidez inata não poderia extinguir completamente a recordação de antigos ressentimentos.
É duvidoso que Sua Alteza tenha dado jamais uma audiência tão longa a um simples mortal, e tive receio de abusar. Por fim, quando a aurora tremeluzente já branqueava as vidraças, o famoso personagem, cantado por tantos poetas e servido por tantos filósofos que trabalham por sua glória, assim falou: Como quero que você guarde de mim uma boa recordação, vou provar-lhe que Eu, de quem se diz tanto mal, sou às vezes bom diabo, para servir-me de uma locução vulgar.
Afim de remediar a perda irremediável de sua alma, dou-lhe a parte que você teria ganho se a sorte lhe tivesse sido favorável, isto é, a possibilidade de aliviar e de vencer, durante toda a sua vida, essa estranha afeição pelo Tédio, que é a fonte de todas as enfermidades e de todos os miseráveis progressos humanos. Jamais você terá um desejo que eu não o ajude a realizá-lo. Será adulado e até adorado; o dinheiro, o ouro, os diamantes, os palácios feéricos virão procurá-lo e lhe pedirão que os aceite, sem que você tenha feito o menor esforço para ganhá-los; mudará de pátria tantas vezes quantas sua fantasia o ordenar; fartar-se-á de volúpias, sem enjoar-se, em países encantadores onde faz sempre calor e onde as mulheres são tão perfumadas quanto as flores. Et cætera, et cætera... — acrescentou levantando-se e se despedindo de mim com um sorriso cheio de bondade.
Não fora o receio de humilhar-me perante tão grandiosa assembleia, eu de bom grado cairia aos pés do generoso jogador, para agradecer-lhe a inaudita munificência. Aos poucos, porém, depois que o deixei, a incurável desconfiança tornou a entrar no meu peito.
Não mais ousei acreditar em tão prodigiosa felicidade e, ao deitar-me, fazendo ainda minha prece por um resto de hábito imbecil, repeti, meio adormecido: — Meu Deus! Senhor meu Deus! Fazei com que o diabo cumpra sua palavra para comigo!
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"
Nenhum comentário:
Postar um comentário