Rever a minha infância? Já lá se vão mais de dez lustros, mas minha vista cansada talvez pudesse ver a luz que dela ainda dimana, não fosse a interposição de obstáculos de toda espécie, verdadeiras montanhas: todos esses anos e algumas horas de minha vida.
O doutor recomendou-me que não me obstinasse em perscrutar longe demais. Os fatos recentes são igualmente preciosos, sobretudo as imagens e os sonhos da noite anterior. Mas é preciso estabelecer uma certa ordem para poder começar ab ovo. Mal deixei o consultório do médico, que deverá estar ausente de Trieste por algum tempo, corri a comprar um compêndio de psicanálise e li-o no intuito de facilitar-me a tarefa. Não o achei difícil de entender, embora bastante enfadonho.
Depois do almoço, comodamente esparramado numa poltrona de braços, eis-me de lápis e papel na mão. Tenho a fronte completamente descontraída, pois eliminei da mente todo e qualquer esforço. Meu pensamento parece dissociado de mim. Chego a vê-lo. Ergue-se, torna a baixar... e esta é sua única atividade. Para recordar-lhe que é meu pensamento e que tem por obrigação manifestar-se, empunho o lápis. Eis que minha fronte se enruga ao pensar nas palavras que são compostas de tantas letras. O presente imperioso ressurge e ofusca o passado.
Ontem tentei um abandono total. A experiência terminou no sono mais profundo e não obtive outro resultado senão um grande descanso e a curiosa sensação de haver visto alguma coisa importante durante o sono. Mas esqueci-me do que era, perdendo-a para sempre.
Italo Svevo, "A consciência de Zeno"
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