Eu, que para cá fui enviado há vinte ou vinte e cinco anos pelo Departamento de Incentivo a Regiões Atrasadas, continuo a sair todos os dias, ao cair do crepúsculo, para borrifar as águas do pântano com desinfetante e para distribuir aos desconfiados habitantes quinino, ácido carbólico, pó de sulfa, unguentos para a pele e remédios contra parasitas. Faço-lhes preleções sobre abstinência e higiene, sobre água sanitária e ddt. Vou aguentando, até que finalmente chegue um substituto, talvez alguém mais jovem e de caráter mais forte do que o meu.
Enquanto isso, sou o farmacêutico, o professor, o tabelião, o árbitro, o sanitarista, o arquivista, o litigante, o apaziguador de querelas. Eles ainda tiram para mim seus chapéus amarfanhados, apertam-nos contra o peito, fazem uma reverência e me chamam de senhor. Eles ainda me bajulam, com seus sorrisos dissimulados e desdentados. Entretanto, mais agora do que antes, sou compelido a adulá-los, a fingir que nada vejo, a me amoldar a suas superstições, a ignorar suas gargalhadas insolentes, a suportar o fedor de seus corpos e o bafo de suas bocas, a aturar as invasões de propriedade que se espalham por toda a aldeia. Admito que já não me resta quase poder algum. Minha autoridade vai se esvanecendo. Restam apenas resquícios esfarrapados de influência, que procuro exercitar por meio de subterfúgios, adulação, mentiras necessárias, vagas advertências e pequenos subornos. O que me resta é aguentar por algum tempo, um pouco mais, até a chegada do substituto. Partirei então para sempre. Ou o contrário: pegarei uma cabana vazia, uma camponesa rechonchuda, e ficarei de vez.
Certa vez, antes da minha vinda, há um quarto de século ou mais, o governador fez uma visita, acompanhado de uma grande comitiva. Ficou uma ou duas horas, e mandou que o curso do rio fosse desviado imediatamente para drenar o pântano maligno. Com ele vieram dignitários e funcionários, topógrafos, clérigos, um jurista, um cantor, um historiador oficial, um ou dois intelectuais, um astrólogo e representantes de dezesseis serviços secretos. O governador fez registrar por escrito suas determinações: cavar. Desviar. Drenar. Erradicar. Desinfetar. Canalizar. Remover. Priorizar. Abrir uma nova página.
Nada aconteceu desde então.
Há quem diga que lá, do outro lado do rio, além das florestas e das montanhas, o governo mudou de mãos várias vezes. Um foi deposto, outro foi derrotado, um terceiro deu um passo em falso, um quarto foi assassinado, um quinto aprisionado, um sexto deu uma guinada, um sétimo fugiu, ou caiu no sono. Aqui, tudo é como sempre foi: os velhos e os bebês continuam a morrer, os jovens a envelhecer prematuramente. A população da aldeia, segundo meus cálculos conservadores, diminui cada vez mais. Pela tabela que preparei e pendurei sobre minha cama, até a metade do século não restará aqui uma alma viva. Exceto os insetos e répteis.
É verdade que aqui nascem crianças aos montes, mas a maioria morre ainda na infância, e quase não são lamentadas. Os jovens fogem para o norte. As moças cultivam beterrabas e batatas na lama espessa, engravidam aos dezesseis anos, e aos vinte murcham diante dos meus olhos. Às vezes, a paixão toma de assalto a aldeia, arrastando-a a uma noite de libertinagem à luz de fogueiras feitas com madeira úmida. Todos perdem a compostura, velhos com crianças, moças com aleijados, homens com animais. Não posso dar detalhes, pois nessas noites me tranco na minha cabana, que é também a farmácia, fecho as rebentadas venezianas de madeira, passo o ferrolho na porta e, por via das dúvidas, ponho uma pistola sob o travesseiro.
Mas noites como essas não são frequentes. No dia seguinte, eles acordam ao meio-dia, atordoados, os olhos vermelhos, e de novo, submissos, vão labutar do alvorecer ao anoitecer em suas glebas lamacentas. Os dias são de calor ardente. Pulgas exasperantes, do tamanho de uma moeda, nos atacam e, quando nos mordem, emitem uma espécie de silvo agudo e insuportável. O trabalho nos campos parece ser extenuante. As beterrabas e as batatas vão sendo tiradas da lama pastosa, quase todas apodrecidas, e mesmo assim são comidas cruas, ou cozidas numa papa pestilenta e infecta. Dois dos filhos do coveiro fugiram para as montanhas e entraram para uma gangue de contrabandistas. Suas mulheres foram morar, elas e os filhos, na cabana do caçula, que ainda é uma criança, não tendo completado catorze anos.
Quanto ao próprio coveiro, um homem de poucas palavras, corcunda e ossudo, ele decidiu não aceitar aquilo calado. Mas seguiram-se semanas e meses de total silêncio, e anos se passaram igual. Um dia, o coveiro açodou-se e se mudou, ele também, para a cabana do filho caçula. Mais e mais bebês foram nascendo, e ninguém sabe quais são os filhos dos irmãos fugitivos, que às vezes pernoitam uma ou duas noites na aldeia, e quais são do filho caçula, e quais do coveiro, e quais de seu velho pai. Seja como for, a maioria desses bebês morreu algumas semanas depois de nascer. À noite, outros homens lá entravam e saíam, assim como algumas moças, crescidas e desmioladas, em busca de um teto ou de um macho, de um abrigo, de um bebê ou de comida. O atual governador não respondeu a três memorandos urgentes, cada um mais alarmante que o outro, que lhe foram enviados a curtos intervalos para alertar quanto à degeneração dos padrões morais e para solicitar sua urgente intervenção. Fui eu o redator e o frustrado remetente desses memorandos.
Os anos transcorrem em silêncio. Meu substituto não chegou. Para o lugar do guarda veio seu cunhado, e há rumores de que o guarda demitido juntou-se aos contrabandistas das colinas. Ainda estou em meu posto, mas cada vez mais exausto. Eles já não me chamam de senhor nem se dão o trabalho de tirar seus bonés esfarrapados para me cumprimentar. Os desinfetantes já acabaram. As mulheres, sem me fazer qualquer pagamento, retiram pouco a pouco o resto de estoque da farmácia. Parece que minha mente e minha vontade se deterioram gradativamente. Ou talvez sejam apenas meus olhos a escurecer, a ponto de até mesmo a luz do meio-dia lhes parecer sombria, e a fila de mulheres à porta da farmácia se assemelhar a uma fileira de sacos abarrotados. Com o passar do tempo, quase me acostumei a seus dentes podres e à onda de fedor que emana de seus hálitos. Assim vou levando, da manhã à noite, dia após dia, do verão ao inverno. Há muito deixei de sentir as picadas dos insetos. Meu sono é profundo e tranquilo. O musgo cresce em meus lençóis, e manchas de fungo florescem em todas as paredes. De vez em quando, uma ou outra aldeã se apieda de mim e me alimenta com um líquido viscoso, provavelmente feito de cascas de batata. Todos os meus livros estão mofados, as encadernações se esfarelam e desmancham. Nada me restou, e eu não saberia distinguir um dia do outro, ou a primavera do outono, ou um ano de outro qualquer. Às vezes, à noite, tenho a impressão de ouvir o lamento distante de algum instrumento de sopro antigo, e não tenho a menor noção de qual seja ou de quem o está tocando, e se o estão tocando na floresta, ou talvez nas colinas, ou talvez dentro de meu crânio, debaixo de meus cabelos cada vez mais grisalhos e ralos. Vou assim, lentamente, voltando as costas a tudo que me circunda e a mim mesmo também.
Exceto por um acontecimento que testemunhei esta manhã, e que aqui devo relatar por escrito, sem expressar qualquer opinião:
Esta manhã o sol subiu e transformou os vapores do pântano numa espécie de chuva viscosa e gelatinosa. Uma chuva quente de verão, com cheiro de suor velho e azedo. Os aldeões começaram a sair das cabanas para descer até os canteiros de batata. Então, no cume da colina mais a leste, entre nós e o sol que se elevava no céu, apareceu um estranho, forte e bonito. Ele começou a agitar os braços, a desenhar no ar úmido todo tipo de círculos e curvas, a dar chutes e a fazer reverências, a pular no mesmo lugar, sem dizer palavra. Quem é ele?, os homens se perguntavam, e o que será que ele quer aqui? Ele não é daqui, nem da outra aldeia, nem das colinas, diziam os velhos uns aos outros. Talvez tenha vindo da nuvem.
E as mulheres diziam, É preciso ter cuidado com ele, é preciso pegá-lo em flagrante, é preciso matá-lo. Enquanto deliberavam e discutiam, o ar amarelado encheu-se com o rumor de diversos sons, pássaros que gritavam, cães, fala humana, berros, broncas, o zumbido de insetos do tamanho de canecas de cerveja. Os sapos do pântano também se deram conta e começaram a coaxar, as galinhas lhes fizeram coro, arreios tilintavam e tosses e gemidos e xingamentos. Vozes diversas.
Aquele homem, começou a dizer o filho caçula do coveiro, mas de repente mudou de ideia e calou-se. Aquele homem, disse o estalajadeiro, está tentando seduzir as moças. E as moças gritavam, vejam, ele está nu, vejam como é grande, vejam, ele está dançando, ele quer voar, vejam, parecem asas, vejam como ele é branco.
O velho coveiro disse, Qual a razão para tanto falatório? O sol já vai alto no céu, o homem branco que estava lá, ou que pensávamos estar lá, desapareceu do outro lado do pântano, ficar falando não adianta nada, um novo dia está começando, está muito quente e precisamos ir trabalhar. Quem pode trabalhar que trabalhe e sofra em silêncio. E quem não pode que vá em frente e morra. Isso é tudo.
Amós Oz, "Cenas da vida na aldeia"
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