Papai atravessou a porta em silêncio e ao invés de chutar o tamborete arredou-o de leve. Observou-me num relance. Depois olhou mamãe que estava de costas, e deixou-se cair no tamborete. A cabeça pendeu sobre o caixote como se se tivesse desprendido do corpo. Não exalava cachaça, desta vez. Surpreendi-me avançando na sua direção. Parei perto do caixote com as pernas trêmulas, e antes que eu percebesse meus dedos já tocavam o ombro de papai.
Mamãe permanecia imóvel junto ao fogareiro, como se esperasse que a mão pesada a atingisse a qualquer momento. Angustiava-me um sentimento doloroso por papai: era como se o estivesse descobrindo sob a camada de violência, e agora ali restasse não apenas meu pai, mas a própria criatura humana na sua dimensão essencial e indestrutível. Olhei para mamãe. E gritei-lhe desesperadamente “Mamãe!” sem que ao menos tivesse necessidade de abrir a boca.
Afinal mamãe se voltou com o prato de comida e viu minha mão pousada no ombro de papai. Colocou o prato no caixote, perto da cabeça de papai. Ele continuou quieto, a respiração funda e descompassada. Mamãe acendeu a lamparina, e a claridade arredou as primeiras sombras da tarde para os cantos do cômodo. Em seguida, mamãe preparou a minha marmita e por último o seu prato e ambos nos sentamos, eu no chão e ela no outro tamborete.
O arfar intenso de papai doía no silêncio. Olhei mamãe. Mamãe me olhou e disse:
– Come.
Depois fitou papai, de esguelha, e levou até à boca uma pequena porção de arroz. Mas teve logo que deixar o garfo de lado para conter o acesso de tosse com a mão. Papai então levantou a cabeça, encarou-a com os lábios abertos. Seu rosto estava molhado de suor. Abaixou os olhos para mim, fungando, e deixou a cabeça pender novamente sobre o caixote.
Ouvimos passos no quintal. Três homens saltaram dentro do barraco e um deles arrancou a cortina que dividia o cômodo. Antes que o coração me socasse o peito e mamãe imobilizasse o garfo e papai erguesse a cabeça, tiraram-no do tamborete, torcendo-lhe os braços.
Papai não tentou reagir, sequer parecia surpreso. Era como se já estivesse esperando aquele momento. Nem ao menos olhou para os homens que o subjugavam. Fitava apenas mamãe, imóvel e fria do outro lado do caixote. Um dos homens levantou o punho e bateu-lhe seguidamente na cara. Com a boca ensanguentada, recebia as pancadas sem tirar os olhos de mamãe.
Levaram-no, os braços presos às costas. Os socos continuavam no quintal e eram mais nítidos quando pegavam na cara de papai. As batidas foram-se distanciando. Mamãe estava com a cabeça quase dentro do prato e as lágrimas escorrendo de seu rosto pingavam sobre o resto da comida. A marmita ainda tremia em minhas mãos e eu comecei a vomitar.
Wander Piroli
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