terça-feira, agosto 2

Uma vida

Gostava de jipe, não de automóvel, e dirigia com extrema cautela. Evitava o centro urbano, e quando tinha de ir até lá, descrevia longas voltas e terminava a pé, para não se expor ao tráfego desembestado das ruas principais. Os filhos riam, pondo em dúvida sua capacidade no volante. Mas todos arrebentavam a máquina, ao usá-la, e ele tinha como pequena glória nunca ter dado uma batida.

Como pequena glória. Porque as maiores eram as que lhe vinham do sítio. Possuíra fazenda, agora tinha sítio. E ficava feliz quando o jipe tropicador o levava para a modesta pasárgada. Esquecendo-se da idade, punha exagero de moço — trinta anos depois — em capinar, plantar, podar; se chovia, plantava mentalmente. Orgulhava-se de produzir não só frutas tropicais como subtropicais. Um cruzamento de espécies, determinando novo sabor, nova forma ou colorido, era uma festa para ele. O sítio confinava com uma fazenda; matava saudades do antigo latifúndio ouvindo, à distância, o vozeio dos vaqueiros e o urro do jumento, pontual como um relógio.

Bacharel? Sim, fizera o curso de Direito, tirara diploma, se necessário lutava contra empresas poderosas, e vencia, sem ligar muito a isso. Guardava os livros essenciais ao exercício da profissão, só esses, no pequeno armário envidraçado. Sua consulta constante era às sementes, à terra, ao tempo; nem se lembrava mais de que, na mocidade, cultivara as letras, escrevera poemas em prosa neossimbolistas, induzira o irmão menor a seguir o ofício de juntar palavras. Em 1959 bateu um recorde negativo, escrevendo só quatro cartas, profissionais e concisas.

Anos e anos escoados na cidadezinha natal, entre problemas pequenos e grandes que nunca se resolviam. Tentou ajudar a resolvê-los, na oposição. No governo era impossível; não tinha paixão bastante para ser injusto ou odioso. Outros disputassem esse ou aquele posto importante, ele nem vereador quis ser. Mudou de terra e de vida. No fim, espectador enjoado, dizia aos políticos: “Seria melhor que fizessem como eu, indo plantar, tirar formiga, limpar galinheiro”.

E vieram os filhos, muitos. Vieram netos, mais de vinte. O jardim e a casa no alto da rua palpitavam de barulho. Ele, que em moço mal suportava o tinir de um copo quebrado, agora enchia os ouvidos e a alma com aquela algazarra maluca. A filha mais nova, nascida depois de longo intervalo, encantava-o: um dia, brincando com ela, esqueceu-se e chamou-a de netinha; era a “rapa do tacho”. Quarenta anos de família, a companheira não lhe faltara nunca. A vida estava completa, ele a vivera sem ambição e sem vaidade.

Fora um belo e desempenado rapaz; agora estava acabado na cama, não havia nada a fazer senão diminuir-lhe as dores e esperar. “Deixemos isso para os últimos dias”, ponderava o médico, racionando as injeções. Virou-se na cama, comentou: “Morrer é muito difícil…”. E quando falar já era um sacrifício, queria ainda agradecer a visita, comentar esse ou aquele assunto alheio à sua situação; gostaria de não dar trabalho a ninguém. Deve ter levado um sentimento: o de não morrer entre suas plantas.
Carlos Drummond de Andrade, "A bolsa & a vida"

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