domingo, agosto 14

A passagem do 'Eu' para o 'Nós'

E uma família pernoita numa vala e outra família chega e as tendas surgem. Os dois homens acocoram-se no chão sobre os calcanhares e as mulheres e as crianças escutam em silêncio. Aqui esta o nó, ó tu, que odeias as mudanças e temes as revoluções. Mantém esses dois homens afastados, faz com que eles se odeiem, se receiem, desconfiem um do outro. Porque aí começa aquilo que tu temes. Aí é que esta o germe do que te apavora. É o zigoto. Porque aí transforma-se o “Eu perdi as minhas terras” rompe-se uma célula e dessa célula rompida brota aquilo que tu tanto odeias: o “Nós perdemos as nossas terras”. Aí é que reside o perigo, pois que dois homens nunca se sentem tão sozinhos e tão abatidos como um só. E desse primeiro “nós” nasce algo muito mais perigoso: “eu tenho um pouco de comida” mais “eu não tenho nenhuma”. E o resultado desta soma é: “Nós temos um pouco de comida”. Então, a coisa toma um rumo, o movimento passa a ter um objetivo. Basta, nessa altura, uma pequena multiplicação e esse trator, essas terras são nossas. Os dois homens acocorados numa vala, a pequena fogueira, a carne a fritar numa frigideira comum, as mulheres caladas, de olhos vidrados; atrás delas as crianças, escutando com o coração palavras que o seu cérebro não alcança.

A noite desce. A criança sente frio. Olhe, tome esse cobertor. É de lã. Pertenceu a minha mãe – tome, fique com ele para a criança. Sim, é aí que tu deves lançar a tua bomba. É este o começo da passagem do “Eu” para o “Nós”.

Se tu, que tens tudo o que os outros precisam ter, puderes compreender isto, saberás também defender-te. Se tu souberes separar causas de efeitos, se souberes que Paine, Marx, Jefferson, Lênin, foram efeitos e não causas, sobreviverás. Mas isso é que tu não podes compreender, pois que a qualidade da posse te cristalizou para sempre na fórmula do “eu” e para sempre te há-de isolar do “nós”
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John Steinbeck, "As vinhas da ira"

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