sexta-feira, março 10

A Era dos 'Sensitive Readers'

Quando George Orwell cunhou, para a posteridade, a Newspeak (Novilíngua), criada pelo Ministério da Verdade, para esconder as coisas mais horríveis, sob o casto manto das palavras bem escolhidas, pensava que essas picardias eram só próprias dos regimes totalitários. As maiores ignomínias eram descritas num estilo altamente purificador, que lhes dava um ar de inocente formulação erudita. O horror era desinfectado pela filologia ao seu serviço.


A verdade, porém, é que Orwell se enganou. O Newspeak está agora em vigor nas democracias e invade o mundo editorial, com a emergência dos “sensitive readers”, que acabam de descobrir um novo nicho de emprego. Estes leitores, mais do que provavelmente, grosseiramente iletrados, como é sempre o caso dos censores, passam a funcionar junto dos editores, com o fim benévolo de catarem, em Homero, Virgílio, Camões, Garrett, Camilo, Eça, Régio ou Pessoa ou Faulkner ou Lawrence ou Proust ou Garcia Marquez, qualquer palavra mais grosseira ou menos conveniente. Mas aquilo que eles são, isto é, Censores, é, por sua vez, censurado e eles passam a ser apenas Leitores Sensíveis. Dá-se assim aos assassinos da cultura, perdão, aos vigilantes da cultura, o poder egrégio de corrigirem os deslizes indesculpáveis dos grandes criadores de cultura. Tudo a bem da protecção de sensibilidades mais finas e subtis de leitores a quem incomodam muito palavras obscenas como “descobrimentos”, “gordo”, “feio” , “coxo”, “cego”, etc. De facto, seria imperdoável permitir-se que gente de pele tão fina se magoasse, ao encontro de tais palavrões.

É mais uma das muitas invenções estapafúrdias que as universidades americanas, com grande alarido, exportam regularmente, para um mundo gulosamente desejoso de se pôr à la page com a sabedoria do Tio Sam. Nós, cá em Portugal, costumávamos ser os últimos a consumir as pérolas de sabedoria que atravessavam o Atlântico, mas as coisas andam a mudar. Tornámo-nos mais atentos, mais depressa modernaços, passámos a consumir mais fluentemente expressões como “sair do armário” & outras, que gostamos de manipular a torto e a direito, para não parecermos demasiado antiquados.

Por mim, faço sinceros votos por que, pelo menos, um ou outro editor mais destemido, da nossa praça lusíada, consiga resistir a esta imensa maré de imbecilização, que nos chega, impetuosa, da pátria de Sherwood Anderson. O Novo mundo deve ter coisa melhor a oferecer-nos: não precisamos de ter orgasmos com este lixo.”

Eugénio Lisboa

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