Cuidou talvez que eu estivesse para casar e dele carecesse com pressa.
Não é o caso, mas muito obrigado. Já não me caso mais, e nisso imito, ainda que tarde e mal, Dom Francisco, pois este não se casou nunca.
O livro é um livro austero, mas tem sua graça; a sabedoria do mestre era temperada de sal; ele não a teve apenas da lição dos clássicos, mas muito de sua própria vida, que foi rica de contrastes, pois andou em guerras, desterros, cadeias e embaixadas. Edgard Prestage diz que Dom Manuel “sabia comandar uma esquadra no mar ou um baile na Corte, argumentar sobre um ponto de teologia, ditar uma balada, explicar a derivação de uma palavra, compor música para uma ópera e penetrar os mistérios da Cabala”. Sabia muito; e o que mais sabia era escrever; ninguém o fazia melhor em português no século XVII; e ainda por cima é um grande clássico espanhol.
A Carta é endereçada a um “Senhor N.”, que se casava e lhe pedia conselhos. De conselhos ele diz: “Esta é uma das coisas que eu cuido que falta mais quem a peça, que quem as dê. Pois certo que aquele que deseja bons conselhos, já parece que deles não necessita; porque é também grande prudência pedir conselhos, que o homem que o sabe pedir crerei que nenhum lhe fará falta.” Uma coisa que ele aconselha ao marido cuja esposa se mostra demasiado agarrada aos pais e irmãos é “namorar a mulher”. E ensina: “O vestido quando se não pede, o brinco que se não espera, a saída em que se não cuida, um não sai de casa uma tarde, um recolher mais cedo uma noite (e, se disser um levantar mais tarde uma manhã, não mentirei)...”
Mas não pensem que Dom Manuel era todo bonzinho; ele discorre longamente pelos “vários gêneros de ruins qualidades que acontece haver nelas” (as mulheres), e os remédios que há, quando há.
A quem tem mulher brava, ele aconselha a se apartar das cortes e grandes lugares, pois “quem grita no despovoado é menos ouvido”.
Desconfia da mulher muito bonita; e diz da feia que “é pena ordinária, porém que muitas vezes ao dia se pode aliviar, tantas quantas seu marido sair de sua presença. Considere que mais vale viver seguro no coração que contente nos olhos; e desta segurança viva contente”.
Fala da mulher néscia (“coisa é pesada, mas não insofrível”), da doente, da impertinente, da ciumenta, da gastadora, da teimosa, da leviana (“este é o último de seus males”). Dá conselhos sobre criadas e pajens. Da mulher engraçada, que sabe cantar ou dançar, diz que essas prendas devem ser usadas em casa. Adverte contra o luxo e os perfumes, as amigas e comadres, os frades e as freiras; dá regulamento até para a prática (a conversa) da mulher casada, e não lhe parece bom que ela fale muito mal ou muito bem de outro homem. Não aprova nem mesmo cachorrinhos enfeitados, nem macacos, nem saguis. Nem mesmo um rouxinol. “Rouxinol de todo o ano, que canta de noite e dizem logo que faz saudades, de que serve? De que servem saudades estando o marido em casa?”
Também é contra negrinhos e negrinhas e livros de cavalaria; Dom Francisco não é brincadeira. Mas uma sua implicância principal é com mulher letrada; e como já vai grande a crônica vou acabar aqui com um caso contado por ele: “Confessava-se uma mulher honrada a um frade velho e rabugento; e como começasse a dizer em latim a confissão, perguntou-lhe o confessor: Sabeis latim? Disse-lhe: Padre, criei-me em mosteiro.
Tornou-lhe a perguntar: Que estado tendes? Respondeu-lhe: Casada. A que tornou: Onde está vosso marido? Na índia, meu Padre (disse ela).
Então com agudeza repetiu o velho: "Tende mão, filha: sabeis latim, criaste-vos em mosteiro, tendes marido na índia? Ora, ide-vos embora e vinde cá outro dia, que vos é força que vós tragais muito que me dizer e eu estou hoje muito depressa.”
Rubem Braga, "A traição das elegantes"
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