terça-feira, março 28

Bibliotecas

A biblioteca não é um local de passagem, é um destino. Tem a beleza do silêncio, da contemplação, da interrupção da pressa e da voragem da miríade de afazeres e apelos quotidianos, está fora do tempo, ou melhor, tem o seu próprio tempo e o seu próprio espaço: quando entramos numa biblioteca e vemos estantes e cadeiras e mesas, é porque ainda não estamos verdadeiramente na biblioteca, assim como quando olhamos para um livro e vemos letras e papel é porque ainda não o estamos a ler. Foi numa biblioteca que visitei pela primeira vez a China, pela mão de Hergé, foi numa biblioteca que cavalguei pelas estepes com Tarass Bulba e os cossacos de Zaporígia, junto às margens do Dnieper, foi também numa biblioteca que conheci o padre Brown.

Essa dimensão extraordinária de uma biblioteca, ao criar um espaço-tempo próprio onde é possível penetrar em diversos universos paralelos, ao interromper o frenesim da vida e — mais importante ainda —, ao quebrar a rotina e os comportamentos mecânicos, encarna e reclama para si uma dimensão sagrada, sem no entanto deixar de ser secular: “Para lá da educação artística cultural dos mais jovens, a biblioteca ou a mediateca podia ser o centro dessa transmissão cultural que hoje faz falta a muitas pessoas que levam uma vida conturbada (e por transmissão entendo aqui, como terão compreendido, não só uma transmissão ‘vertical’, intergeracional, mas múltiplas formas de intercâmbio ‘horizontal’). Ser um lugar onde se pode pensar de maneira transversal, nesta época em que os saberes, as funções, os espaços, a gerações, os tempos da vida estão compartimentados, fragmentados, e em que as artes, pelo contrário, transpõem cada vez mais as fronteiras. Onde nos podemos apropriar das tecnologias de ponta e das lendas antigas, dos escritos, das imagens ou das músicas da regiões próximas como de terras distantes. Onde tanto se dá importância à luz como à sombra, às experiências mais íntimas como a momentos compartilhados” (Michèle Petit, Ler o mundo, 2020).

A biblioteca é também um lar ou, pelo menos, um refúgio: “De modo explícito ou intuitivo, bibliotecários, professores, psicólogos estão bem cientes disto, usando-o com crianças, adolescentes ou adultos exilados, desalojados, ou cujo quadro de vida foi destruído ou alterado, como sucedeu por exemplo na Colômbia, na periferia de Medellín, onde alguns bibliotecários desenvolveram um programa chamado O refúgio dos contos, quando uma parte da população se viu obrigada a deixar as suas casas devido aos combates entre grupos armados.

»De colete à prova de bala, Consuelo Marín ia assim ler em voz alta àqueles que estavam agrupados num liceu do bairro. Uma manhã, ouviu tiros a aproximar-se e quis interromper a leitura, mas o jovens ouvintes exigiram ouvir o fim da história: ‘Estes meninos e meninas que passaram as noites a chorar pelos corredores do liceu como medo do escuro da noite, como uma segunda pele, pele da alma que não podiam tirar, não queriam perder o fim de um conto’“ (Ibidem).

A beleza deste trecho evidencia o poder encantatório de uma história, mostrando que a necessidade de as terminar é tão poderosa que não teme a morte, pois a vida que desejamos viver é a vida com sentido, que preenche todo o potencial possível e sugerido. Isto encerra também aquilo a que chamo “efeito Xerazade”, o adiar da morte até que haja uma consumação e uma plenitude, o necessário final que dá sentido à história, que dá sentido à vida.

A morte também parece ser sensível à narrativa, também ela interrompe os seus afazeres, como qualquer leitor, fascinada por um bom conto ou ideia. Por esse motivo, os leitores vivem, literalmente, mais do que quem não lê (vale a pena conferir o estudo A chapter a day: Association of book reading with longevity, onde se lê: “Book readers experienced a 20% reduction in risk of mortality over the 12 years of follow up compared to non-book readers”.

Na Colômbia, durante o período mais conturbado do narcotráfico, em especial nas últimas décadas do século passado, as bibliotecas eram mais seguras do que qualquer outro lugar. Disse-me um bibliotecário de Medellín: “Lembro-me de terem atacado igrejas para matar quem se refugiou nelas, mas nunca atacaram bibliotecas.”

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