O livro impresso ajudou a inaugurar uma primavera da consciência à escala mundial. Enroscados num livro, continuamos a descobrir novas identidades.
Tal leitura privada só se generalizou na era da imprensa. Na maioria das línguas, a palavra «ler» significava originalmente «ler em voz alta». Os homens de Alexandre, o Grande, olhavam-no perplexos quando lia em silêncio, e até à era da impressão a leitura pública era mais comum do que leitura privada. Com a nova privacidade, veio um aprofundamento do envolvimento emocional, do afeto. A socióloga pioneira vitoriana Harriet Martineau sentia que frequentemente se tornava o autor que estava a ler, e romances como Clarissa geravam invulgares episódios de choro convulsivo e de exaltação. Após Gutenberg, injetamos histórias na nossa imaginação, inebriados com novos domínios.
A leitura privada deu-nos novas dimensões interiores. Sentimos essa verdade nas estantes de uma grande biblioteca ou nos cantos de uma livraria, sítios que nos dão uma sensação de imanência, de estarmos à beira de um infinito espaço interior. A antiga Biblioteca de Alexandria pode nem sequer ter existido, mas, como diz a classicista Edith Hall, a ideia de uma tal biblioteca é quase tão importante para a nossa psique coletiva como a realidade da sua existência. Sabemos instintivamente que somos tanto infinito como serendipidade, por isso adoramos perder-nos em livrarias e bibliotecas e acidentalmente encontrarmos livros que desbloqueiam os nossos vários eus escondidos.
A nossa apaixonada relação com os livros propriamente ditos (não com «o texto» dos teóricos literários) tem vindo a ser estabelecida através de muitas formas físicas pouco documentadas. É até possível, como observou Virginia Woolf, que se trate de uma interação quase sexual. Tenho-o visto acontecer ao longo de 30 anos de venda de livros: clientes acariciando a capa de um livro, espreitando por baixo da sobrecapa, fechando sub-repticiamente os olhos para cheirarem o vale formado pelas páginas — por vezes, acompanhando-o com um discreto gemido de prazer —, abraçando-o após a sua aquisição, e dando-lhe até mesmo um pequeno beijo. Aqueles que apreciam livros não conseguem explicar porque é que gostam de pegar em livros e, depois de tanto os ouvir — algumas centenas de vezes ao longo dos anos — dizer que não o conseguem explicar, começo a achar que essas pessoas não querem analisar um sentimento tão interior.O livro, de papel feito a partir de árvores, é meio caminho para a floresta, esse grande manancial de mitos. Os dispositivos tecnológicos, além de serem feitos de materiais mais frios e desnaturalizados, são implacavelmente exigentes. Em 1913, Kafka, com surpreendente presciência, descreveu o futuro numa carta à sua pretensa namorada Felice, que vendia dictafones. Detestava tais máquinas, e regozijava--se com a forma como podia olhar pela janela do escritório a meio do ditado e ouvir depois o raspar da lima das unhas da sua secretária enquanto ela se juntava asecreto ramerrão. Disse a Felice que «perante tais máquinas» nos tornamos «degradados trabalhadores fabris». Hoje, todos nós nos sentimos, por vezes, como broncos a servir as nossas máquinas; tal não acontece com o livro. Kafka previu que essas máquinas acabariam por falar connosco, apresentando sugestões de restaurantes, ou mesmo corrigindo a pronúncia. Até há uma década, quando comecei este livro, pensar em tal tecnologia era um absurdo, mas agora é trivial. A pobre Felice não respondeu à carta de Franz, que parecia completamente alucinada. A «fria tecnologia» dos dispositivos digitais proporciona «interatividade». É, porém, uma interatividade com regras de formatação, desde «gostar» de algo até publicar em blogues, muito longe da forma como muitos interagem com os livros — «tecnologia quente» —, ao escrever neles. A marginália de Montaigne na sua cópia de Lucrécio representa toda uma vertente do seu pensamento, tal como as inflamadas notas de Blake nos Discourses de Joshua Reynolds. A marginália de Coleridge preenche um volume inteiro das suas obras coligidas. Contudo, a marginália foi literalmente marginalizada por bibliotecários académicos, especialmente na época vitoriana, quando foi extirpada e deitada fora em operações de reencadernação e até mesmo — como aconteceu com a marginália de Milton — censurada. O legado dessa higiene benthamista é a excessiva relutância que hoje temos em escrever nos livros. Um atual historiador da marginália lamenta que, a menos que afrouxemos essa nossa atitude, deixaremos de ter registo das nossas reações primeiras e imediatas aos livros. Desde sensivelmente 1600 e até cerca de 1870, os apreciadores de livros, movidos por uma bibliossensualidade igualmente irreverente, recortaram as suas passagens favoritas e colaram-nas em livros de notas, passagens essas que eram intercaladas com os seus próprios pensamentos manuscritos. Essa mania em grande medida, ficou por registar devido à atitude de bibliotecários como M. R. James, que descreveu os livros de notas como «uma espécie de resíduo ou sedimento». Para aborrecer ainda mais a mente empírica dos bibliotecários, esses livros eram inclassificáveis — seriam livros ou manuscritos? Até ao final dos anos 1980, foram lançados fora aos magotes.
Os sugestivos livrinhos conhecidos na Grã-Bretanha como chapbooks1 são outra parte perdida da história do livro. Essas narrativas de crime, mitologia, atividade paranormal, romance, filosofia e religião eram impressas aos magotes em todo o mundo, mas eram menosprezadas pelos bibliotecários e, até recentemente, ignoradas pelos académicos. É estranho, tendo em conta quantos gigantes da literatura se alimentaram dessas histórias virais. Pepys acumulou-os, Blake escreveu grandes poemas nesse formato, Dickens foi influenciado por eles, Stevenson gostava tanto deles que escreveu um (Moral Emblems), e o apreço de Shakespeare por Autólico, o nómada e aldrabão vendedor de folhetins, é palpável. Contudo, muitas vezes sem encadernação, esses relatos tinham apenas circulação de rua, e, em grande parte, perderam-se.
Jacques Derrida lamentou a perniciosa influência do quadro predominantemente masculino de bibliotecários que moldou a nossa cultura, e cunhou o termo «patriarquivo». Pouco lhes dizia o interesse deste escritor na arqueologia dos livros, nas odisseias dos tomos nómadas, nos segredos escondidos na tinta e no papel, nas marcas- -d’água e nas pinturas produzidas nos bordos das páginas de um livro, nas histórias das flores prensadas e nas dedicatórias escritas à mão. Os amantes ressentem-se dos estímulos rivais e os ditadores só querem ser amados. O líder da Alemanha de Leste, Erich Honecker, presidiu a muitas perseguições, mas lamentou-se na velhice: «Será que eles não viam como eu os amava?» Este ciúme é responsável pelo grande número de livros queimados por ditadores. A sobrevivência dos livros clandestinos é uma história que ainda está totalmente por contar, desde as secretas fotocópias de Soljenítsin encontradas nos arquivos do Kremlin até ao exemplar de O Triunfo dos Porcos descoberto em Berlim Leste. Estas são as crónicas não censuradas da nossa história de amor com os livros, uma relação que assistiu à emergência de um eu mais privado e reflexivo. É uma relação com o livro enquanto objeto físico que floresce — talvez de uma forma particular — mesmo na era digital.
Não sei como é que aprendi a ler. Lembro-me unicamente das minhas primeiras leituras e do seu efeito em mim. É desse tempo que dato a minha consciência de mim. (Confissões de Rousseau.)
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