terça-feira, março 21

Anoitecer sobre Sussex: reflexões no interior de um automóvel

Sarah Afonso
O anoitecer é generoso com Sussex, pois Sussex não é mais jovem, e se mostra agradecida pelo véu do começo de noite, tal como uma mulher mais velha fica feliz quando uma lâmpada é coberta por uma pantalha e de seu rosto resta apenas o contorno. O contorno de Sussex ainda é muito bonito. Os penhascos se destacam, um atrás do outro, contra o mar. Todo o Eastbourne, todo o Bexhill e todo o St Leonards, seus calçadões e suas pousadas, suas lojas de bijuterias e suas lojas de guloseimas e seus cartazes e seus enfermos e suas charretes de passeio, tudo isso se apaga. O que fica é o que havia quando William chegou da França há dez séculos: uma fileira de penhascos escorrendo para o mar. Também os campos são redimidos. A rubra mancha de casas de veraneio ao longo da costa é lavada por uma tênue e lúcida laca marrom de vento, na qual elas e seu rubor se afogam. É ainda muito cedo para lâmpadas; e muito cedo para estrelas.

Mas, pensei, há sempre algum sedimento de irritação quando o momento é tão belo quanto agora. Os psicólogos devem saber explicar; olhamos para o alto, somos tomados por uma beleza extravagantemente maior do que poderíamos esperar – há agora nuvens cor-de-rosa sobre Battle; os campos estão mosqueados, marmorizados – nossas percepções se enchem rapidamente como balões expandidos por algum jato de ar, e depois, quando tudo parece ter se enchido e esticado ao máximo, com beleza e beleza e beleza, um alfinete é espetado; tudo se esvazia. Mas o que é o alfinete? Tanto quanto eu possa distinguir, o alfinete tem algo a ver com a nossa própria impotência. Não consigo suportar isso... não consigo expressar isso... sou tomada por isso... sou dominada. Em algum ponto dessa região situava-se nosso descontentamento; e ele estava ligado com a ideia de que nossa natureza exige domínio sobre tudo o que recebe; e o domínio aqui significava capacidade para transmitir o que víamos agora sobre Sussex de maneira que outra pessoa pudesse partilhar disso. E mais, houve outra espetada do alfinete: estávamos desperdiçando nossa oportunidade; pois a beleza se espalhava pela nossa mão direita, pela nossa mão esquerda; pelas nossas costas também; estava escapando o tempo todo; tínhamos a oferecer apenas um dedal para uma enxurrada que podia encher piscinas, lagos.

Mas deixem de lado, disse eu (é bem sabido como, em circunstâncias como essa o eu se divide, e um eu é ávido e insatisfeito, e o outro, rígido e filosófico), deixem de lado essas aspirações impossíveis; contentem-se com a vista à nossa frente, e acreditem quando lhes digo que é melhor sentar-se e encharcar-se; ser passivo; aceitar; e não se incomodar porque a natureza lhes deu seis pequenos canivetes com os quais rasgar o corpo de uma baleia.

Enquanto esses dois eus mantinham, assim, um colóquio sobre o curso sensato a adotar em presença da beleza, eu (uma terceira parte agora se declarava) disse para mim mesma: quão felizes estavam eles em desfrutar de uma ocupação tão simples. Ali se sentavam eles, enquanto o carro seguia a toda velocidade, observando tudo: um monte de feno; um telhado vermelho-ferrugem; uma lagoa; um velho voltando para casa com o saco nas costas; ali se sentavam eles, associando cada cor no céu e na terra à sua paleta de cores, montando pequenos modelos de celeiros e fazendas de Sussex sob a luz vermelha que seria adequada à escuridão de janeiro. Mas quanto a mim, sendo um tanto diferente, sentei-me, distante e melancólica. Enquanto eles estavam assim ocupados, disse para mim mesma: Foi-se, foi-se; acabou, acabou; passou e acabou, passou e acabou. Sinto, no momento mesmo em que a estrada fica para trás, que a vida ficou para trás. Estivemos naquele trecho e já estamos esquecidos. Lá, as janelas se acenderam por um segundo com nossos faróis; a luz agora se apagou. Outros vêm atrás de nós.

Então, de repente, um quarto eu (um eu que está de emboscada, dormente pelo jeito, e salta sobre nós de surpresa. Suas observações, muitas vezes, não têm nenhuma conexão com o que vem acontecendo, mas devem ser consideradas justamente por serem abruptas) disse: “Olhe aquilo”. Era uma luz; brilhante, bizarra; inexplicável. Por um segundo, fui incapaz de nomeá-la. “Uma estrela”; e durante esse segundo ela manteve sua estranha intermitência de algo inesperado e dançou e irradiou. “Sei o que você quer dizer”, disse eu. “Sendo o errático e impulsivo eu que é, você sente que a luz que vem das colinas lá embaixo pende do futuro. Vamos tentar entender isso. Vamos usar a razão. Sinto-me ligada não ao passado mas ao futuro. Imagino Sussex cinco séculos à frente. Imagino que grande parte da vulgaridade terá se evaporado. As coisas terão secado, desaparecido. Haverá portões mágicos. Correntes de ar alimentadas por energia elétrica limparão as casas. Luzes, intensas e com foco firme, cobrirão a terra, cumprindo sua função. Olhem a luz que se move naquela colina; é o farol de um carro. Dia e noite, Sussex estará, em cinco séculos, cheia de pensamentos sedutores, de focos de luz rápidos, eficazes.”

O sol estava agora abaixo do horizonte. A escuridão se espalhava rapidamente. Nenhum dos meus eus podia ver qualquer coisa além da minguada luz de nossos faróis sobre a sebe. Convoquei-os a se reunirem. “Agora”, disse, “chegou a hora de acertarmos as contas. Agora temos que nos recompor; temos que ser um único eu. Nada deve mais ser visto a não ser uma única faixa de estrada e acostamento que nossas luzes refletem sem parar. Estamos perfeitamente abastecidos. Estamos calorosamente enrolados num cobertor; estamos protegidos do vento e da chuva. Estamos sozinhos. Agora é o momento do ajuste de contas. Agora eu, que comando a companhia, vou colocar em ordem os troféus que nós todos colhemos. Vejamos; houve uma boa safra de beleza: fazendas; penhascos se destacando do mar; campos jaspeados; campos sarapintados; céus emplumados de vermelho; tudo isso. Houve também o desaparecimento e a morte do indivíduo. A estrada que desaparecia e a janela iluminaram-se por um segundo e então ficaram escuras. E depois houve a luz súbita e dançante que pendia do futuro. “O que fizemos hoje”, disse eu, “foi isto: a beleza; a morte do indivíduo; e o futuro. Olhem, vou desenhar um pequeno personagem para o deleite de vocês; aqui está ele. Será que esse pequeno personagem que avança pela beleza, pela morte, pelo futuro – econômico, poderoso e eficiente quando as casas serão saneadas por um sopro de vento quente lhes agrada? Olhem para ele; ali em cima do meu joelho.” Sentamo-nos e olhamos para o personagem que fizemos naquele dia. Estava rodeado por íngremes maciços rochosos cobertos de cerradas florestas. Ela ficou, por um segundo, muito, muito solene. Na verdade, era como se a realidade das coisas estivessem expostas sobre o cobertor. Como que atingidos por uma descarga elétrica, fomos sacudidos por um tremor violento. Exclamamos juntos: “Sim, sim”, como que afirmando alguma coisa, num momento de reconhecimento.

E então o corpo que tinha ficado silencioso até agora começou sua canção, quase, no início, tão baixo quando o sussurro das rodas: “Ovos e bacon; torradas e chá; lareira e um banho; lebre cozida em fogo lento”, e continuou: “e geleia de frutas vermelhas; um cálice de vinho; com café em seguida, com café em seguida – e depois para a cama; e depois para a cama”.

“Fora daqui!”, disse para meus eus ali reunidos. “A tarefa de vocês terminou. Estão dispensados. Boa noite.”

E o resto da viagem se passou na deliciosa companhia de meu próprio corpo.
Virginia Woolf, "O sol e o peixe"

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