segunda-feira, março 27

Cosmogonia

Como o calor está muito forte, entro numa igreja e me ponho a rezar. Com um picolé na mão esquerda, ensaio com a direita um sinal da cruz de pura gentileza e logo caio em êxtase diante do silêncio do templo, como sempre me ocorre em circunstâncias semelhantes.

Nenhum padre à vista, graças a Deus, e apenas uma velha discreta num dos bancos da frente, com o seu rosário entre as mãos. Dá-me vontade de pedir-lhe o rosário emprestado apenas por uma hora, mas o picolé na mão esquerda me lembra que eu não poderia manejá-lo à vontade, e desisto do intento. De resto, o verdadeiro misticismo não depende de pequeninas bolas de osso enfiadas num pedaço de barbante — e eu felizmente sou um místico verdadeiro, embora sem Deus. Portanto, Ave Maria, cheia de graça...


As palavras, aliás, também são desnecessárias, como o provam os mudos de nascença, e ao pensar nas palavras estarei prejudicando o mistério da minha união perfeita com as forças absolutas do nada — ou o nirvana, como dizia o meu professor de budismo. O certo mesmo seria eu me despir até da roupa do corpo, cueca inclusive, e colocar-me nu como nasci diante do Supremo Artífice do Universo, ou que outro nome tenha, para receber-lhe as graças em sua plenitude, sem interferência de qualquer corpo estranho. E para começar jogo longe, embora a contragosto, o picolé de abacaxi que estava uma delícia, e arranco fora o paletó e a gravata, e me ponho a tirar a camisa e os sapatos, segundo a expressa recomendação do Cristo aos que quisessem segui-lo até a morte. Em pouco tempo estou mais nu do que são Sebastião no altar da direita, e me prostro cheio de arrepios sobre a laje fria, o coração pulsando-me forte como um motor de explosão.

O tempo em que assim fico não sei dizer, mas o grito da velha beata logo me põe, de um salto, na posição vertical, embora ainda místico e tocado de divinos arrepios. Duas outras pessoas, que mal acabavam de entrar, põem-se a gritar ainda mais forte do que a velha, e logo me vejo cercado por uma pequena multidão de curiosos, que pretende linchar-me em nome de Deus Padre Todo-Poderoso. Todos, embora gritando, examinam-me dos pés à cabeça em minha esplêndida nudez, sobretudo à altura do sexo e das nádegas, que é o que parece despertar-lhes mais curiosidade e escândalo — e eu fico como um animal acuado de encontro à parede fria, justo sob uma imagem de são Jorge e o Dragão.
Com a chegada do padre e de dois soldados da polícia, que também me examinam o sexo e as outras partes pudendas, vejo-me intimado a vestir-me mais depressa do que é do meu hábito fazer, sempre sob o olhar vigilante da velha devota e de duas senhoritas indignadas, que parecem querer estudar anatomia à minha custa. Levado à presença do delegado, procuro identificar-me como sobrinho do presidente da República, mas sem êxito, e acabo trancafiado numa enxovia sem o mínimo de conforto e de higiene, ao lado de elementos desclassificados e em tudo iguais aos que tenho encontrado em todas as enxovias do mundo, seja na China como na ilha de Madagáscar. Como eu já não tinha onde dormir, e os bancos de jardim nunca me apeteceram, chego a achar cômoda a situação a que me acabou levando o meu cristianismo ortodoxo, mesmo porque aqui não me poderão linchar tão facilmente como lá fora e eu sinto necessidade de um longo repouso para refazer minhas energias e minha paz de espírito, tão abalada pelos últimos acontecimentos políticos.

Pelo relógio do enforcado, que guardo como um talismã no bolso posterior das calças, são exatamente sete horas e quarenta e cinco minutos — presumo que da noite.

Campos de Carvalho, "A Lua Vem da Ásia"

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