— Quando a gente levanta o guarda-chuva é para você parar essa joça! Ouviu, sua besta?
Gosta de todos aqueles olhares fixos nele. Tira o chapéu. Passa a mão pela cabeleira leonina. Enche as bochechas e dá um sopro comprido. Paga a passagem com dez mil-réis. Exige o troco imediatamente.
— Não quero saber de conversa, seu galego. Passe já o troco. E dinheiro limpo, entendeu? Bom.
Retém o condutor com um gesto e verifica sossegadamente o troco.
— O quê? Retrato de Artur Bernardes? Deus me livre e guarde! Arranje outra nota.
Levanta-se para dar um jeito na cinta, chupa o cigarro (Sudan Ovais por causa dos cheques), examina todos os bancos, vira-que-vira, começa:
— Isto até parece serviço do governo! Pausa. Sacudidela na cabeleira leonina. Conclui:
— O que vale é que os homens um dia voltam…
Primeiro sorriso aparentemente sibilino. Passeio da mão direita na barba escanhoada. Será espinha? Tira o espelhinho do bolso. É espinha sim. Porcaria. Segundo sorriso mais ou menos sibilino. Cara de nojo.
Não sei que raio de cheiro tem este Largo do Arouche, safa!
Vira a aliança no seu-vizinho. Essa operação deixa-o meditabundo por uns instantes. Finca o olhar de sobrancelhas unidas no cavalheiro da esquerda. Esperando. O cavalheiro afinal percebe a insistência. É agora:
— Perdão. O senhor leu a última tabela do Matadouro? Viu o preço da carne de leitão por exemplo? Cinco ou seis ou não sei quantos mil-réis o quilo!
Não espera resposta. Não precisa de resposta Berra no ouvido do velho da direita:
— É como estou lhe contando: o quilo!
Quase despenca do bonde para ver uma costureirinha na Rua do Arouche. As pernas magras encolhem-se assustadas.
— O cavalheiro queira ter a bondade de me desculpar. São os malditos solavancos desta geringonça. Um dia cai aos pedaços.
Dá um tabefe no queixo mas cadê mosca? Tira um palito do bolso, raspa o primeiro molar superior direito (se duvidarem muito é fibra de manga), olha a ponta do palito, chupa o dente com a ponta da língua (tó! tó!), um a um percorre os anúncios do bonde. Ritmando a leitura com a cabeça. Aplicadamente. Raio de italiano para falar alto. Falta de educação é coisa que a gente percebe logo. Não tem que ver. O do ODOL já leu. Estava começando o da CASA VENCEDORA. Isto de preço de custo só engana os trouxas.
— Oh estupidez! O senhor já reparou naquele anúncio ali? Bem em cima da mulher de chapéu verde. CONSERTA-SE MÁQUINAS DE ESCREVER. ConserTA-SE máquinassss! Fan-tás-tico! Eu não pretendo por duzentos réis condução e ainda por cima trechos seletos de Camilo ou outro qualquer autor de peso, é verdade… Mas enfim…
É preciso um fecho erudito e interessante ao mesmo tempo.
— Mas enfim…
A mão procura inutilmente no ar dando voltinhas.
— Mas enfim… Seu Serafim…
Fica nisso mesmo. Acerta o cebolão com o relógio do Largo do Municipal. Esfrega as mãos. O guarda-chuva cai. Ergue-o sem jeito. Enfia a cartolinha lutando com as melenas. Previne os vizinhos:
— Este viaduto é uma fábrica de constipações. De constipações só? De pneumonias mesmo. Duplas!
Silêncio. Mas eloquente. Palito de fósforo é bom para limpar o ouvido. Descobre-se diante da Igreja de Santo Antônio.
— Não está vendo, seu animal, que a mulher; não se sentou ainda? Aprenda a tratar melhor os passageiros! Tenha educação!
Cumprimenta rasgadamente o Doutor Indalécio Pilho, subinspetor das bombas de gasolina, que passa no seu Marmon oficial e não o vê. Depois anota apressadamente o número do automóvel no verso de uma cautela do Monte de Socorro do Estado.
— O povo que sue para pagar o luxo dos afilhados do governo! Aproveite, pessoal! Vá mamando no Tesouro enquanto o povo não se levanta e manda vocês todos… nada! Mas isto um dia acaba.
Terceiro sorriso nada sibilino. Passa para a ponta. Confirma para os escritórios da I.R.F. Matarazzo:
— Ora se acaba!
Outro cigarro. Apalpa todos os bolsos. Acende-o no do vizinho. E dá de limpar as unhas com o canivete de madrepérola. Na esquina da Rua Anchieta por pouco não arrebenta o cordão da campainha.
Estende a destra espalmada para o companheiro de viagem:
— Natanael Robespierre dos Anjos, um seu criado.
Desce no Largo do Tesouro. Faz a sua fézinha no CHALET PRESIDENCIAL (centenas invertidas). Atravessa de guarda-chuva feito espingarda o Largo do Palácio.
E todos os dias úteis às onze horas menos cinco minutos entra com o pé direito na Secretaria dos Negócios de Agricultura e Comércio onde há vinte e dois anos ajuda a administrar o Estado (essa nação dentro da nação) com as suas luzes de terceiro escriturário por concurso não falando na carta de um republicano histórico.
Antônio de Alcântara Machado
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