sexta-feira, março 17

Pequenos contos da cidade pequena


I


O Poeta está deitado de sapatos sobre a colcha de renda de bilros — relíquia de Vovozinha.
— ... e de melhores dias — suspira o Anjo, completando-lhe o pensamento.
— Anjo, você está cada vez mais aburguesado.
— Essa não, menino! Eu não sou comunista...

II

Do ferro de engomar, que se assoprava por trás, saíam faíscas como do traseiro do Diabo. As faces de Marianinha ficavam cada vez mais afogueadas, mais lustrosas e lindas, como as maçãs artificiais que havia no centro de mesa da sala de jantar. Não sei por que estou evocando todos esses pormenores — eles não levam a nenhum enredo notório, desculpem... Eu me aproximo como um gato, por trás.

III

O auto que passa e a vitrina da esquina trocam um duelo de reflexos.

IV

Escarrapachadas nas cadeiras da calçada, as comadres fazem trancinha. Nada lhes escapa. Nem um ponto. Mas para o menino quieto que ali se acha a tiracolo das tias o grande escândalo é a Lua, que acaba de surgir, à traição, enorme, sangrenta, assassina — ao contrário de tudo que se esperava dela —, logo ali entre as torres da igreja.

V

Noite alta um bêbado passa cantando a marchinha de um antigo carnaval. Tem uma voz de vidro moído. Uma voz aguda e esfarelada de velho.

VI

Um rodar, um estrépito de patas. Abafadamente. Mas já não se haviam sumido, há tempo, esses carros puxados a cavalo? Sia Carolina acorda e benze-se. É a Morte! É a Morte que passa, no seu carro fantasma, a visitar seus doentes.
Mário Quintana, "Caderno H"

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