quarta-feira, março 15

Pilhérias

Nem todas as tradicionais casas interioranas possuem um passado de feitos gloriosos de que possam se vangloriar, mas no seio delas sempre existem lendas que, transmitidas oralmente, se perpetuam ao longo das gerações. Tais lendas se criam em torno de ocorrências por vezes fantásticas ou até cômicas e ficam retidas na memória familiar como uma espécie de “pilhéria” genial.

Um fato ocorreu no ano em que ingressei na faculdade, ano em que, por coincidência, também celebramos uma das últimas cerimônias religiosas em memória de meu pai, falecido havia muito. Em meio aos numerosos parentes e familiares que pela primeira vez em bastante tempo lotaram as dependências da casa estava um tio que conseguira casar a filha mais velha com um graduado funcionário do governo, diplomado em direito pela Universidade de Tóquio. Esse tio voltou-se para mim e disse:

— Soube que você também ingressou na universidade em  que meu genro se formou e o parabenizo, mas que ramo você escolheu seguir?

Quando lhe respondi que escolhera a Faculdade de Letras, deixou transparecer claramente sua decepção.

— Nesse caso, não podemos esperar que você consiga arrumar um bom emprego… — comentou.

Contudo, minha mãe, pessoa habitualmente discreta, respondeu da seguinte maneira e me deixou aturdido, pois, naqueles tempos, eu só pensava em me tornar um estudioso da língua francesa:

— Ora, se não conseguir emprego, esse menino na certa vai ser escritor! — No silêncio que se seguiu, o que ela acrescentou prestamente desfez a tensão e levou todos a rir: — E material para romance ele tem o suficiente dentro da minha “maleta de couro vermelha”.

Pois essa “maleta de couro vermelha” era uma das já mencionadas lendas, entre fantásticas e cômicas, correntes em minha família. As palavras de minha mãe calaram fundo em mim, principalmente porque um dos meus parentes mais próximos havia rido à minha custa. De fato, três anos depois, época em que eu
ainda nem havia definido os rumos de minha vida, escrevi alguns contos de maneira experimental. E a publicação de um deles no jornal acadêmico da Universidade de Tóquio me levou a ganhar a vida como escritor. Ou seja, induzidas pela “pilhéria” de minha mãe, “pilhérias” surgirão outras vezes neste romance, nem sempre revestidas de sua literal insignificância cômica, mas disso
falaremos oportunamente, no decorrer da história.

Kenzaburo Oe, "Morte na água"

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