quinta-feira, março 16

Moscas, e teto azul

Amigos dizem-me: pinte o teto de sua cozinha de azul, assim não entrarão moscas.

Desço a escada sonhador e perplexo; será verdade? Quem descobriu que moscas não amam teto azul, esse delicadíssimo segredo da construção civil, fino mergulho na sensibilidade aérea do inseto aborrecido para nós, mas em si mesmo respeitável como todo ser?

Faz o homem sua casa e não quer moscas, pinta de azul seu teto, moscas chegam até a janela, olham lá dentro para cima, pensam: pintou de azul o teto, ele não nos ama, adeus.

A relação mosca-homem é incessante no mundo, tanto que o homem a chama oficialmente Musca domestica, celebrando seu amor à casa do homem, imaginando talvez que não havia moscas antes de haver casas, como certamente não existiam andorinhas sem beirais para viver e fios telefônicos onde se encontrarem as amigas e bater um papo olhando a tarde, uma criança nascida em Brasília que não sair de lá morrerá sem ver andorinhas, triste sina.

Cuida o leitor que estou escrevendo bobagens, e é certo. Mas eu sei das bobagens minhas, elas têm um enredo íntimo. Estou escrevendo assim à toa e já estou vendo para onde vou indo; comecei a falar de mosca, já passei para andorinhas, o resto é fácil de imaginar, estou pensando nessa andorinha cigana que apareceu na minha varanda e sozinha, sozinha, não fez verão, mas fez uma súbita, ainda úmida, inquietante primavera, com seus ventos e frias luas.

Vai durar? Tenho a secreta certeza de que não, mas me pergunto às vezes, e dirijo aqui esta pergunta aos homens que sabem as coisas, que são os homens poetas: acaso se pode prender mulher como quem prende passarinho na gaiola? Nosso deleite com mulher e passarinho não se estraga assim no seu mais íntimo sentido, que é de ter num instante o que é em si mesmo uma elusiva criatura — a posse do evanescente? Na minha varanda já apareceu canário, até beija-flor, até uma deusa, ó tu, Diana, caçadora de brisas, que presides ao destino das nuvens errantes e das espumas do mar.

Sei como faço: fico sério, trêmulo por dentro, mas dono do mundo e de mim, sentindo na cabeça a leve mão de Deus e o cicio inaudível de Sua voz dizendo: “Eis aí.”

Assim também A ouvirei quando reconhecer que foi a Morte que desceu em minha varanda: “Eis aí.” E me irei, talvez com um pouco de pena de mim, mas sem medo e sem verdadeira tristeza, me irei como se vão as moscas ao recuarem, atônitas, perante o teto azul de uma cozinha.
Rubem Braga, "A traição das elegantes"

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