quarta-feira, julho 31

Leitura "dois em um"


 

Enfim, existo


Não estou certo de que, na verdade, existo. Sou todos os escritores que já li, todas as pessoas que já encontrei, todas as mulheres que amei; todas as cidades que visitei
Jorge Luis Borges

Ninguém

A rua estava fria. Era sábado ao anoitecer mas eu estava chegando e não saindo. Passei no bar e comprei um maço de cigarros. Vinte cigarros. Eram os vinte amigos que iam passar a noite comigo.

A porta se fechou como uma despedida para a rua, mas a porta sempre se fechava assim. Ela se fechou com um som abafado e rouco. Mas era sempre assim que ela se fechava. Um som que parecia o adeus de um condenado. Mas a porta simplesmente se fechara e ela sempre se fechara assim. Todos os dias ela se fechava assim.

Acender o fogo, esquentar o arroz, fritar um ovo. A gordura estala e espirra ferindo minhas mãos. A comida estava boa. Estava realmente boa, embora tenha ficado quase a metade no prato. Havia uma casquinha de ovo e pensei em pedir-me desculpas por isso. Sorri com esse pensamento. Acho que sorri. Devo ter sorrido. Era só uma casquinha.

Busquei no silêncio da copa algum inseto, mas eles já haviam todos adormecido para a manhã de domingo. Então eu falei em voz alta. Precisava ouvir alguma coisa e falei em voz alta. Foi só uma frase banal. Se houvesse alguém perto diria que eu estava ficando doido. Eu sorriria. Mas não havia ninguém. Eu podia dizer o que quisesse. Não havia ninguém para me ouvir. Eu podia rolar no chão, ficar nu, arrancar os cabelos, gemer, chorar, soluçar, perder a fala, não havia ninguém para me ver. Ninguém para me ouvir. Não havia ninguém. Eu podia até morrer.

De manhã o padeiro me perguntou se estava tudo bom. Eu sorri e disse que estava. Na rua o vizinho me perguntou se estava tudo certo. Eu disse que sim e sorri. Também meu patrão me perguntou e eu sorrindo disse que sim. Veio a tarde e meu primo me perguntou se estava tudo em paz e eu sorri dizendo que estava. Depois uma conhecida me perguntou se estava tudo azul e eu sorri e disse que sim. Estava tudo azul.

Luiz Vilela, "Tremor de terra"

Livraria infantil mais antiga do Brasil fecha as portas no Rio

As livrarias estão fechando. Está desesperador esse movimento. Livrarias pequenas não são simples lojas, elas proporcionam uma experiência afetiva com conversa, troca de ideias. É uma coisa colorida, aconchegante. Não é um simples comércio 
Luísa de Souza

Fundada em 27 de setembro de 1979 no shopping da Gávea, na Zona Sul, a livraria é a mais antiga do setor infanto-juvenil no país.

A Malasartes nasceu da parceria entre a escritora e jornalista Ana Maria Machado, a contadora de histórias Maria Eugênia da Silveira e então recém-formada psicóloga Renata Moraes. Anos mais tarde, após as saídas de Machado e Silveira, entraram na sociedade a irmã e a mãe de Renata, Claudia Amorim e Yacy Mattos de Moraes.


Com o tempo, apenas Renata continuou a frente da loja. Ela confidenciou uma curiosidade sobre a criação da Malasartes: uma astróloga foi quem orientou a fundação em 27 de setembro, dia de São Cosme e Damião.

"A astróloga que disse pra minha sócia Maria Eugênia: "tem que ser no dia 27 de setembro, porque é o dia de São Cosme e Damião, que é das crianças". Não é legal? E a gente dá todo ano - dava, né, porque esse ano vai dar - as balinhas. Eu embrulhava com a minha mãe, Yaci", conta.

A relevância para o setor editorial começou logo no mesmo ano da abertura, quando o cantor Chico Buarque lançou seu primeiro livro para crianças "Chapeuzinho Amarelo". A sessão de autógrafos na livraria resultou em quilômetros de fila e um engarrafamento que se estendeu até o bairro vizinho, o Jardim Botânico, firmando a livraria no mapa cultural da cidade, onde reuniu gerações de escritores, ilustradores e crianças.

Organizada com mesinhas baixas, almofadas e estantes coloridas, a loja foi pioneira no incentivo às crianças para manusear os livros em uma época em que isso era quase proibido nas livrarias. O "diferencial" da Malasartes foi relembrado por uma antiga fã nas redes sociais, a psicóloga Celina Cantidiano.

"Era muito estimulado que a gente mexesse nos livros. Acho que antigamente tinha muito essa visão dos livros não serem tocados. "Mãos para trás, não encostem". E a Malasartes foi muito pioneira, que eu lembro também, de ter uma mesinha para as crianças ficarem brincando, ter contação de história. A gente poder mexer nos livros, manusear os livros, e era tão bom", relata.

A Malasartes foi mais uma a não sobreviver à crise que afeta livrarias físicas pelo país. Segundo a dona, Renata Moraes, desde a volta da pandemia da Covid-19, em 2022, a clientela reduziu em, pelo menos, 40%. A concorrência com plataformas online e os alto valores pagos pelo ponto dentro do shopping também influenciaram na decisão de fechar as portas.

Apesar da tristeza pelo fechamento da livraria, Renata conta que tem recebido muito carinho de antigos clientes - gerações que agora levam filhos e netos para se despedirem do espaço, a quem ela batizou de "Os Gavianos". Ao lado das últimas funcionárias Alana Lopes Moreira e Juliana Dias de Araújo, Renata diz que o sentimento é de missão cumprida.

"Quem são os nossos clientes que estão aparecendo toda hora na mídia e vem aqui me abraçar e a gente chora? Eu chamo "Os Gavianos", eu resolvi botar esse nome neles. Não necessariamente eles moram na gávea, mas é todo mundo que tem um carinho especial por aqui. De fato, eles vinham, sentavam nesse banquinho. Antes vinham porque os pais traziam, os avós, e trazem os filhos agora", afirma.

De acordo com dados da Associação Estadual de Livrarias do Rio de Janeiro, até 2023, em seis anos, o Rio de Janeiro perdeu 60 livrarias - com fechamentos de marcas tradicionais, como a Saraiva, Galileu, Cultura, Travessa e a rede Nobel.

Um levantamento feito pela Nielsen, em parceria com a Câmara Brasileira do Livro e o Sindicato Nacional dos Editores, apontou uma redução de 8% nas vendas de livros no Brasil em 2023. Já o faturamente do setor recuou em 5%.

O anúncio do fechamento foi feito em uma publicação da livraria no Instagram, no último dia 13, e comoveu o público. Artistas, como Patricia Pillar, Alice Wegmann, Matheus Solano, a autora Thalita Rebouças e a cantora Zélia Duncan lamentaram o encerramento das atividades.

Poesia e polícia

Certa vez na Isla Negra a empregada nos disse: “Senhora, D. Pablo, estou prenha.” Depois teve um menino. Nunca soubemos quem era o pai. A ela não importava. O que lhe importava, isto sim, é que Matilde e eu fôssemos padrinhos da criança. Mas não foi possível, não pudemos. A igreja mais próxima está em El Tabo, uma aldeola sorridente onde pusemos gasolina na camioneta. O padre se eriçou como um porco-espinho. Um padrinho comunista? Jamais! Neruda não entrará por esta porta ainda que leve teu filho nos braços. A empregada voltou para suas vassouras na casa, cabisbaixa. Não compreendia.

Em outra ocasião vi D. Asterio sofrer. É um velho relojoeiro, já bastante idoso e o melhor cronometrista de Valparaíso. Repara todos os cronômetros da Armada. Sua mulher, sua velha companheira de cinquenta anos de casamento, estava morrendo. Achei que devia escrever alguma coisa sobre ele, algo que o consolasse um pouco em tão grande aflição, que ele pudesse ler para sua esposa agonizante. Assim pensei, não sei se tinha razão mas escrevi o poema, pondo nele minha admiração e minha emoção pelo artesão e seu artesanato, por aquela vida tão pura entre todos os tique-taques dos velhos relógios. Sarita Vial o levou ao jornal La Unión, dirigido por um senhor Pascal. O senhor Pascal é sacerdote, não quis publicá-lo; o poema não seria publicado. Neruda, seu autor, é um comunista excomungado. Não quis. Morreu a senhora, a velha companheira de D. Asterio. E o sacerdote não publicou o poema.

Quero viver num mundo sem excomungados. Não excomungarei ninguém. Não diria amanhã a esse sacerdote: “O senhor não pode batizar ninguém porque é anticomunista.” Não diria a outro: “Não publicarei seu poema, sua criação, porque o senhor é anticomunista.” Quero viver num mundo em que os seres sejam somente humanos, sem outros títulos a não ser estes, sem serem golpeados na cabeça com uma régua, com uma palavra, com um rótulo. Quero que se possa entrar em todas as igrejas e em todas as gráficas. Quero que não haja mais ninguém para esperar as pessoas na porta da prefeitura para detê-las e expulsá-las. Quero que todos entrem e saiam do Palácio Municipal sorridentes. Não quero que ninguém fuja de gôndola, que ninguém seja perseguido de motocicleta.

Quero que a grande maioria, a única maioria, todos, possam falar, ler, escutar, florescer. Nunca entendi a luta senão para que esta termine. Nunca entendi o rigor senão para que o rigor não exista. Tomei um caminho porque acredito que esse caminho nos leva, a todos, a essa amabilidade duradoura. Luto por essa bondade ubíqua, extensa, inesgotável. De tantos encontros entre minha poesia e a polícia, de todos estes episódios e de outros que não contarei porque me repetiria, e de outros que não me aconteceram mas a muitos que já não poderão contá-los, fica-me no entanto uma fé absoluta no destino humano, uma convicção cada vez mais consciente de que nos aproximamos de uma grande ternura.

Escrevo sabendo que sobre nossas cabeças, sobre todas as cabeças, existe o perigo da bomba, da catástrofe nuclear que não deixaria ninguém nem nada sobre a terra. Pois bem, isto não altera minha esperança. Neste minuto crítico, neste pestanejar de agonia, sabemos que entrará a luz definitiva pelos olhos entreabertos. Todos nos entenderemos, progrediremos juntos e esta esperança é irrevogável.
Pablo Neruda, "Confesso que vivi"

terça-feira, julho 30

Loja de leitura


 

A vitória dos néscios

Não nos deve surpreender que, a maior parte das vezes, os imbecis triunfem mais no mundo do que os grandes talentos. Enquanto estes têm por vezes de lutar contra si próprios e, como se isso não bastasse, contra todos os medíocres que detestam toda e qualquer forma de superioridade, o imbecil, onde quer que vá, encontra-se entre os seus pares, entre companheiros e irmãos e é, por espírito de corpo instintivo, ajudado e protegido. O estúpido só profere pensamentos vulgares de forma comum, pelo que é imediatamente entendido e aprovado por todos, ao passo que o gênio tem o vício terrível de se contrapor às opiniões dominantes e querer subverter, juntamente com o pensamento, a vida da maioria dos outros.

Isto explica por que as obras escritas e realizadas pelos imbecis são tão abundante e solicitamente louvadas - os juízes são, quase na totalidade, do mesmo nível e dos mesmos gostos, pelo que aprovam com entusiasmo as ideias e paixões medíocres, expressas por alguém um pouco menos medíocre do que eles.

Este favor quase universal que acolhe os frutos da imbecilidade instruída e temerária aumenta a sua já copiosa felicidade. A obra do grande, ao invés, só pode ser entendida e admirada pelos seus pares, que são, em todas as gerações, muito poucos, e apenas com o tempo esses poucos conseguem impô-la à apreciação idiota e ovina da maioria. A maior vitória dos néscios consiste em obrigar, com certa frequência, os sábios a atuar e falar deles, quer para levar uma vida mais calma, quer para a salvar nos dias da epidemia aguda da loucura universal.

Giovanni Papini, "Relatório sobre os homens"

Abertura sob pele de ovelha

Falso Profeta, insone, Extraviado,
Vivo, Cego, a sondar o Indecifrável:
e, jaguar da Sibila – inevitável,
meu Sangue traça a rota desse Fado.

Eu, forçado a ascender, eu, Mutilado,
busco a Estrela que chama, inapelável.
E a pulsação do Ser, fera indomável,
arde ao Sol do meu Pasto – incendiado.

Por sobre a Dor, Sarça do Espinheiro
que acende o estranho Sol, sangue do ser,
transforma o sangue em Candelabro e Veiro.

Por isso, não vou nunca envelhecer:
com meu Cantar, supero o Desespero,
sou contra a Morte e nunca hei de morrer
Ariano Suassuna

Sem efeitos colaterais


Busquei tranquilidade em todos os lugares, mas só a encontrei sentado sozinho em um canto com um pequeno livro
Thomas A. Kempis

A um jovem

Prezado Alípio:

Ontem à noite, ao sair de nosso apartamento, aonde fora em busca de sabedoria grega e só encontrou um conhaque e um gato por nome Crispim, assentei de reduzir a escrito o que lhe dissera. Aula de cepticismo? Não. Ele se aprende sozinho.

A única coisa que se pode remotamente concluir do que conversamos é: não vale a pena praticar a literatura, se ela contribuir para agravar a falta de caridade que trazemos do berço.

Por isso, e porque não adiantaria, não lhe dou conselhos. Dou-lhe anticonselhos, meu filho. E se o chamo de filho, perdoe: é balda de gente madura. Poderia chamar-lhe irmão, de tal maneira somos semelhantes, sem embargo do tempo e do pormenor físico: cultivamos ambos o real ilusório, que é um bem e um mal para a alma.

Pouco resta fazer quando não nascemos para os negócios nem para a política nem para o mister guerreiro. Nosso negócio é a contemplação da nuvem. Que pelo menos ele não nos torne demasiado antipáticos aos olhos dos coetâneos absorvidos por ocupações mais seculares.

Recolha pois estes apontamentos, Alípio, e saiba que eu o estimo:

I – Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar.

II – Ao escrever, não pense que vai arrombar as portas do mistério do mundo. Não arrombará nada. Os melhores escritores conseguem apenas reforçá-lo, e não exija de si tamanha proeza.

III – Se ficar indeciso entre dois adjetivos, jogue fora ambos, e use o substantivo.

IV – Não acredite em originalidade, é claro. Mas não vá acreditar tampouco na banalidade, que é a originalidade de todo mundo.

V – Leia muito e esqueça o mais que puder.

VI – Anote as ideias que lhe vierem na rua, para evitar desenvolvê-las. O acaso é mau conselheiro.

VII – Não fique baboso se lhe disserem que seu novo livro é melhor do que o anterior. Quer dizer que o anterior não era bom.

VIII – Mas se disserem que seu novo livro é pior do que o anterior, pode ser que falem a verdade.

IX – Não responda a ataques de quem não tem categoria literária: seria pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria, não ataca, pois tem mais que fazer.

X – Acha que sua infância foi maravilhosa e merece [ser] lembrada a todo momento em seus escritos? Seus companheiros de infância aí estão, e têm opinião diversa.

XI – Não cumprimente com humildade o escritor glorioso, nem o escritor obscuro com soberba. Às vezes nenhum deles vale nada, e na dúvida o melhor é ser atencioso para com o próximo, ainda que se trate de um escritor.

XII – O porteiro do seu edifício provavelmente ignora a existência, no imóvel, de um escritor excepcional. Não julgue por isso que todos os assalariados modestos sejam insensíveis à literatura, nem que haja obrigatoriamente escritores excepcionais em todos os andares.

XIII – Não tire cópias de suas cartas, pensando no futuro. O fogo, a humidade e as traças podem inutilizar sua cautela. É mais simples confiar na falta de método desses três críticos literários.

Mando-lhe aqui jovem Alípio, outras drageias de suposta sabedoria, completando assim a instrução que lhe ministrei.

XIV – Procure fazer com que seu talento não melindre o de seus companheiros. Todos têm direito a presunção de genialidade exclusiva.

XV – Faça fichas de leitura. As papelarias apreciam esse hábito. As fichas absorverão o seu excesso de vitalidade e, não usadas, são inofensivas.

XVI – Se sentir propensão para o “gang” literário, instale-se no seio de sua geração e ataque. Não há polícia para esse género de actividade. O castigo são os companheiros e depois o tédio.

XVII – Não se julgue mais honesto que o seu amigo porque soube identificar um elogio falso, e ele não. Talvez seja apenas mais duro de coração.

XVIII – Evite disputar prémios literários. O pior que pode acontecer é ganhá-los, conferidos por juízes que o seu senso crítico jamais premiaria.

XIX –A sua vaidade assume formas tão subtis que chega a confundir-se com modéstia. Faça um teste: proceda conscientemente como vaidoso, e verá como se sente à vontade.
XX – Seja mais tolerante com o cabotinismo de seu amigo; quase sempre esconde uma deficiência, e só impressiona a outros cabotinos.

XXI – Quanto ao seu próprio cabotinismo, ele esfriará se observar que, na hipótese mais cristã, é objecto de tolerância alheia.

XXII – Antes de reproduzir na orelha de seu livro a opinião do confrade, pense, primeiro, que ele não autorizou a divulgação; segundo, que a opinião pode ser mera cortesia; terceiro, que não admira tanto assim o confrade.

XXIII – Procure ser justo com os outros; se for muito difícil, bondoso; na pior eventualidade, omisso.

XXIV – Opinião duradoura é a que se mantém válida por três meses Não exija maior coerência dos outros nem se sinta obrigado intelectualmente a tanto. E proceda à revisão periódica de suas admirações.

XXV – Procure não mentir, a não ser nos casos indicados pela polidez ou pela misericórdia. É arte que exige grande refinamento, e será apanhado daqui a dez anos se ficar famoso; e se não ficar não terá valido a pena.

XXVI – Deixe-se fotografar à vontade, sem chamar os fotógrafos; não recuse autógrafos, mas não se mortifique se não os pedirem. Homero não deixou cartas nem retratos, mas Baudelaire deixou uns e outros. O essencial se passa com outros papéis.

XXVII – Tem um diário para explicar-se; é assim tão emaranhado? Para justificar-se: sua consciência anda meio turva? Para projectar-se no futuro: julga-se tão extraordinário?

XXVIII – Trate as corporações com cortesia, pois poderá vir a ingressar numa; com indiferença, pois o mais provável é não ingressar nunca.

XXIX – Aplique-se a não sofrer com o êxito de seu companheiro, admitindo embora que ele sofra com o seu. Por egoísmo poupe-se a qualquer espécie de sofrimento.

XXX – Boa composição oral é a de orgulho e humildade; esta nos absolve de nossas fraquezas; aquele nos impede de cair em outras. Quanto aos santos-escritores, é de supor que foram canonizados apesar da condição literária.

XXXI – Seja discreto. É tão mais cómodo!

Carlos Drummond de Andrade, "A bolsa & a vida"

domingo, julho 28

Livro é coração

 


A raposa e o avião

Um homem da cidade, perambulando no campo é suspeito. Se levar uma espingarda, explica-se perfeitamente a sua presença. Há sempre compreensão para um argumento belicoso. Troca-se um olhar de cumplicidade e a arma sugere reminiscências de velhas caçadas infrutíferas, que são lembradas como sucessos felizes.

Inútil espingarda! Encosto-a à primeira árvore de sombra e estiro-me na areia fofa e fulva, esperando a intimidade casual dos insetos e das aves. O tufo das manjeriobas bronzeadas esconde-me como um biombo. As formigas negras desfilam em cadência impecável, um a fundo. Duas aranhas tecem armadilhas baixas e sedutoras. Uma cobra verde suja deslizou e desapareceu. Invisível cigarra espalha sua cantilena atritante e teimosa. Vou adormecendo, embriagado de silêncio, quietação, serenidade.


Bruscamente, surgida do capão de pau-de-ferro que os cipós entrelaçam harmoniosamente, sai uma raposa ouro-cinza, viva, inquieta, ágil, farejadora. Num momento se detém perto de mim. O vento sopra-lhe no focinho escuro e fino, ocultando-lhe meu rastro pela inevitável emanação do cheiro de homem, índice de perigo mortal. Posso vê-la em liberdade, senhora de seus movimentos instintivos, na plenitude da força graciosa, da astúcia milenar, da feiticeira desenvoltura juvenil. O pelo igual e liso, acamado sem a ondulação de um arrepio, indica ausência de qualquer suspeita. A cauda na espessura normal roça o solo, sinal de tranquilidade. Camarada raposa não malda a proximidade de um espectador com uma linda carabina de repetição ao alcance do gesto.

Suas orelhas recortam-se, hirtas, sensíveis à captação da mais longínqua denúncia inimiga. Fica imóvel como uma pedra. O focinho desloca-se, vagaroso, num amplo raio verificante, perscrutador, irradiando suspicalidade. As orelhas funcionam como detentores dos ruídos distantes. Ninguém! Se o vento mudar de quadrante serei localizado, pelo meu aroma inconfundível, às suas narinas delicadas. Dará um arranco sacudido, princípio de carreira olímpica, quase sem barulho audível, e desaparecerá como uma sombra, diluída na orla mosqueada da mataria rala. Avança, leve e fácil, fincando as patas na areia tépida, numa indizível elegância vulpina. No céu escampo de nuvens, de incomparável azul, perpassa um surdo, persistente e rouco zumbido que faz vibrar a paisagem silenciosa na tarde lenta de verão. O rítmico ronronar enche de sonoridade estranha o descampado solitário. Durante segundos, a raposa procurou fixar o som nas vizinhanças, virando o focinho para todas as direções, orelhas erguidas e paralelas, a cauda alteada, os olhos faiscantes de curiosidade e medo inicial.

Estacou: patas dianteiras retesadas e firmes, vibrantes como alavancas de aceleração, e as traseiras curvas, trêmulas, ansiosas para o salto salvador na solução da escapula.

Na linha do horizonte passava o pássaro de prata, de asas estendidas, haloado pela luz do sol que o incendiava de branco, deixando a trauta inusitada daquele ruído atordoador. Era um avião de carreira, rumando para o aeroporto.

Vejo a raposa imóvel, focinho apontado para cima, olhando o avião sonoro. A bocarra úmida entreabre-se num espanto inconcebível, mandíbula decaída, mostrando a ponta escalarte da língua, a cauda baixa e grossa, os quadris curvados, as orelhas atentas, duras como se armados em latão, seguindo a ave reboante; dois olhos escancarados, luzentes, crescidos de assombro, fitam o mistério presente, ruidoso e alto, acompanhado pelas patrulhas do rumor. Sinto que a curiosidade chumbou-a ao solo quando o corpo palpitante anseia pela libertação veloz. Filha do mato, primitiva, arrebatada, fiel a todos os seus velhos instintos de fome e de sexo, ladra, fugitiva, predadora, covarde, rebelde aos amavios humilhantes da domesticação, incapaz de figurar num circo, aprender um bailado, obedecer a um gesto, livre, faminta e rústica, a raposa olha o avião sereno, semeador de ecos.

Durante dois minutos o animal está estático, inteiramente possuído por aquele centro de interesse de inaudita novidade. A cabeça afunilada acompanha automaticamente a trajetória do avião cintilante. As patas dianteiras mergulham na areia, duras, esticadas como de madeira rija; as traseiras têm um leve e visível frêmito de impaciência e pavor. Como o mirmecólio tinha a frente de leão e o final de formiga, a raposa ostenta a coragem da atenção obstinada por diante e o medo incontido por detrás. Está tremendo mas parada, quieta, subjugada pela visão inesperada da grande ave prateada e canora.

Se a raposa “pensa” por uma sucessão de imagens, não haverá nenhuma anterior para determinar-lhe o processo da comparação assimiladora. É uma imagem nova, virgem e de impossível cotejo no fichário mental das reminiscências raposinas. Qual será a reação íntima e maravilhosa dessa contemplação? Quais as soluções mais ou menos duradouras, subsequentes ao conhecimento visual da aeronave? Com que a raposa comparará o avião atravessando nuvens com seus motores sonorizantes? Tê-lo-á como uma ave gigantesca, jamais anteriormente vista, feita, como todas as aves deste mundo, de carne, penas e sangue, susceptível de mastigação e deglutição saboreadas? O focinho, seguindo obedientemente o voo, não seria uma muda perseguição ideal, prevendo e observando o local do pouso da imensa caça voadora?

Creio que a raposa, a dar-se crédito ao seu “romance” onde é personagem clássica, terá muito pouco de sentimentalismo e de visão abstrata das coisas inidôneas para um bom almoço. Admite-se que o sapo cante às estrelas e o veado duele por amor, valentemente, como um canário, uma lagartixa ou um escorpião. Ninguém, sob a cúpula do céu, evoca uma raposa lírica e sim perpetuamente ligada ao programa rendoso de utilitarismo imediato e prático, cientemente cumprido como num master plan da United States Information Agency.

Águias já têm morrido enfrentando aviões, atraídas pelo seu estridor e, quem sabe, batendo-se pelo monopólio do domínio aéreo. A raposa, a deduzir-se pelo que dela sabemos, lemos e vemos, terá no avião uma possibilidade mental de refeição inacabável e de sabor nunca degustado.

Talvez deduza que o ronco do motores é um resfolegar de agonia, de próximo declínio fatal. E quando o aparelho desapareceu pensaria na felicidade das outras raposas porventura vigilantes nas proximidades do pouso. A imensa presa iria para outras gargantas, outros estômagos mais afortunados.

Aqui onde estou dista dois quilômetros das casas que rodeiam a vila vizinha. A raposa será familiar frequentadora dos galinheiros providos para a festa do Natal. Já viu automóvel, certamente. Ouviu os clamores dos rádios domésticos e deve ter encontrado semelhança entre a sua e a voz de certas glórias cantantes nos microfones submissos.

Está a poucos metros de mim, olhando o avião que se tornou pequenino. O focinho continua no mesmo nível anterior, patas dianteiras firmes, as traseiras trêmulas, recurvadas, os olhos ansiosos, tontos, abismados na sedução irresistível que se desfaz na altura da tarde.

Guardará o segredo deste conhecimento de imagem nova ou comunicá-la-á às companheiras no fortuito convívio dos comandos predatórios da madrugada?
Minha impressão é bem diversa, meus senhores. Parece-me que a raposa hipnotizada está fazendo um esforço milagroso para compreender. Toda ela é tensão, nervos polarizados na direção única de encontrar um processo dedutivo de assimilação, uma assimilação que leve a imagem para o fichário das imagens anteriores, vulpinas e úteis. Que íntimas reações permanecerão na memória deste Canis vulpis depois de haver contemplado a retumbante ave platinada? No meio de toda numerosa fauna, onde conta vítimas e perseguidores implacáveis, como deverá incluir a existência do possante pássaro roncador voando sem bater asas brilhantes?

Agora o avião não é mais avistado. O rumor morreu no ar. A raposa volta à última forma. O focinho vira para o chão, areia, gravetos, rastros de animais, folhas secas, banais. Apruma-se e trota, airosa, para frente, sem mais olhar o céu pálido do entardecer onde passara a grande ave de prata.

Com as pernas formigando de cãibras ergo-me, apanho a espingarda incólume e caminho, trôpego. Na vereda, fundos, estão os quatro orifícios do rastro da raposa, denúncia de sua atenção inquieta, de sua curiosidade sôfrega, de sua expectativa despremiada.

Pode ser que, na meia-noite, ao esgueirar-se para o assalto às galinhas dorminhocas, passe, rápida e sonora, a visão fulgurante daquele pássaro estranho e branco, tão grande, bem maior que dois carros de bois, rugindo dez vezes mais, fazendo-a deter-se e olhar para o alto, para onde raramente as raposas olham.

Luís da Câmara Cascudo, "Canto de Muro"

Depravações do gosto

Empoleiro-me numa lanchonete. Peço iogurte.

— Iogurte limão?

— Não!

— Ah, tem iogurte morango.

— Mas não tem iogurte puro?

Pura é a inocência minha. Pois tudo o que preferem agora é com gosto de outra coisa e não da própria coisa. Peço uma mineral. Oferecem-me mineral limão, mineral laranja etc. Procuro uma barra de chocolate. Vejo que é “flavorizado”, como lá diz no invólucro. É quase impossível hoje em dia encontrar chocolate com gosto de chocolate, iogurte com gosto de iogurte, ou uma democracia apenas democrática.
Mário Quintana, "Porta giratória"

Vantagem da leitura na cama


Todas as desgraças acontecem a um homem porque ele não sabe ficar sozinho em seu quarto
Antonio Muñoz Molina, "Sefarad"

Criação

Aquele lugar era tão próximo da perfeição que não dava vontade nem de dizer a nós mesmos que sorte fora parar lá. Os melhores lugares novos tinham de ser protegidos de nossos próprios gritos de prazer. Guardaríamos as palavras por semanas ou meses, até um fim de tarde suave em que um comentário qualquer nos faria relembrar. Creio que acreditávamos, juntos, que uma voz errada é capaz de obliterar uma paisagem. Esse sentimento era ele próprio tácito, e era uma das fontes de nossa união.

Abri os olhos e vi nuvens impelidas pelo vento — nuvens de vento em popa — e uma única fragata pendurada numa corrente de ar, as asas longas planas e imóveis. O mundo e todas as coisas nele contidas. Eu não era bobo de achar que estava vivendo algum momento primevo. Era um produto moderno, aquele hotel, planejado para dar às pessoas a sensação de que elas haviam deixado para trás a civilização. Mas se eu não era ingênuo, também não sentia vontade de alimentar dúvidas sobre aquele lugar. Tínhamos vivido meio dia de frustrações, longas idas e vindas num carro, e o toque refrescante da água doce em meu corpo, e a ave a sobrevoar o oceano, e a velocidade daquelas nuvens baixas, aqueles imensos píncaros a desabar, e a sensação de flutuar sem peso, girando lentamente na piscina, como uma espécie de êxtase com controle remoto, tudo isso me fazia sentir que eu sabia o que era estar no mundo. Uma coisa especial, sim. O sonho da Criação que brilha no limite da busca de quem viaja a sério. Nu. Faltava apenas que Jill atravessasse as cortinas diáfanas e em silêncio entrasse na piscina.
Don DeLillo, "O Anjo Esmeralda"

sábado, julho 27

Hora do recreio

 


Fugir a fingir

Fugir é cada vez mais difícil mas é cada vez mais necessário.

É bom fingir que se está a fugir, que não se pode ficar em casa nem ir a lugares previsíveis, onde se pode ser apanhado.

Ir ao cinema é sempre uma fuga. É pena não haver escuridão total. Mas há horários em que se consegue estar sozinho a ver um filme.

Há lugares perto de onde vivemos - ou, melhor ainda, longe - aonde nunca fomos. É bom ser-se turista numa terra que ninguém visita.

É bom saber que ninguém nos pode localizar. Localizar está para a liberdade como conservar para as sardinhas.


Os fugitivos são, por definição - e não só nos filmes de Nicholas Ray - felizes. Fugir é bom. As responsabilidades, de que toda a gente está sempre a falar, são más para nós. Nem sequer são boas para os outros.

Fugir sem ter razão para fugir é um acto libertador de cobardia criativa. O medo é, tal como a preguiça e todas as espécies (sem distinção) de egoísmo, uma manifestação da mais elevada inteligência.

"Fica-te", dizem os escravos que absorveram os interesses dos esclavagistas. "Deixa-te ficar; contenta-te com o que tens; enfrenta aquilo que tens para enfrentar", aconselham os carrascos já derrotados da liberdade.

Os escravos verdadeiros fugiam mesmo quando corriam o risco de morrer. Que se há-de dizer dos escravos figurativos de hoje em dia que, quando fogem, só correm o risco de viver?

Desliguem-se os telemóveis. Mudem-se as coordenadas. Confundam-se as tentativas de contacto. Fugir é cada vez mais difícil mas é cada vez mais necessário.

Fujamos já!
Miguel Esteves Cardoso

Sozinho no velório

Aquele ali, deitado com as mãos cruzadas sobre o peito, foi meu amigo de muitos anos. Dos melhores anos: os da faculdade e um tanto mais adiante, quando as perspectivas eram maiores que as obrigações. Vivemos coisas juntos: bares, festas, viagens ao Rio (ele era do Rio), idas a shows, à praia, ao Maracanã. Até rodar o carro na serra de Ubatuba e bater no guard-rail a gente fez junto.

Mas a vida, você sabe: um se casou, depois o outro, vieram os filhos, o trabalho, os compromissos, ele foi morar em outra cidade, depois noutra, e passamos a nos ver pouco. Nos últimos dez anos, bem pouco.

Então, por que estou aqui? Sentado sozinho num canto do velório, deslocado, um ou outro dos presentes me conhece só de vista. Me levanto de vez em quando para espichar as pernas, ir tomar um café, checar as mensagens no celular. Os amigos daquele tempo não vieram. De novo, então: por que estou aqui?

Porque a notícia de sua morte me tocou profundamente. Precisava vir. Peguei o carro, dirigi 140 quilômetros e aqui estou: para mostrar o quanto gostava do amigo, o quanto ele fez parte da minha vida. Mas não há ninguém a quem eu possa dizer isso.

Olho em volta. Não há poesia alguma nas duas velas que queimam devagar nem nas coroas de flores. Elas não estão aqui pela poesia, mas por um motivo prático que eu é que não vou ser cruel de explicar aqui. A vida tem dessas impiedades. Mas também, que mania essa de querer pôr poesia em tudo.

Contemplo meu amigo deitado, sua pele empalideceu mais um pouco, e os dois filhos, desolados, passam a maior parte do tempo nos braços um do outro.

Foram chamar o padre. Ele veio, puxou um livrinho do bolso da batina, folheou, deu uma longa espiada no pessoal, molhou os dedos com a língua, folheou de novo as páginas e leu uma oração bem mal lida, com pausas onde não havia e alguns gaguejos. Parece que estava ali apenas para cumprir uma obrigação burocrática, como um dentista que prepara os instrumentos para tratar o paciente.

Um dos amigos daquele tempo chega. Já posso conversar com alguém, lembrar das passagens boas, comentar que o amigo já não vinha bem e dar as risadas que fazem parte de todo velório. Mas nada dizemos. As palavras se recusam. Ficamos silentes olhando o corpo do amigo inerte, sem cor, esquisito. Quase não o reconhecemos assim. É o primeiro da turma que vemos num caixão. Muito estranho: parece um ator deslocado num filme onde não deveria atuar. Outro amigo, ainda mais próximo, morreu há alguns anos de covid, quando os velórios estavam proibidos, e não pudemos nos despedir. Esse, portanto, é o primeiro de nós que velamos.

Ouve-se um zumzum na sala. Ele anuncia a chegada dos funcionários do cemitério. Chegam respeitosos, fecham o caixão, o colocam num carrinho desses de golfe e se dirigem ao local do enterro. As pessoas seguem o carro, só se ouvem os passos no caminho de cascalhos. Resolvo diminuir a passada, disfarçando, até me desvencilhar da procissão, sair de fininho e voltar para o carro, minha cidade, minha vida.

Aquele ali, deitado com as mãos cruzadas sobre o peito, era meu amigo. Um velho e bom amigo. Por isso vim.

Sobre o amor

Houve uma época em que eu pensava que as pessoas deviam ter um gatilho na garganta: quando pronunciasse — eu te amo —, mentindo, o gatilho disparava e elas explodiam. Era uma defesa intolerante contra os levianos e que refletia sem dúvida uma enorme insegurança de seu inventor. Insegurança e inexperiência. Com o passar dos anos a ideia foi abandonada, a vida revelou-me sua complexidade, suas nuanças. Aprendi que não é tão fácil dizer eu te amo sem pelo menos achar que ama e, quando a pessoa mente, a outra percebe, e se não percebe é porque não quer perceber, isto é: quer acreditar na mentira. Claro, tem gente que quer ouvir essa expressão mesmo sabendo que é mentira. O mentiroso, nesses casos, não merece punição alguma.

Por aí já se vê como esse negócio de amor é complicado e de contornos imprecisos. Pode-se dizer, no entanto, que o amor é um sentimento radical — falo do amor-paixão — e é isso que aumenta a complicação. Como pode uma coisa ambígua e duvidosa ganhar a fúria das tempestades? Mas essa é a natureza do amor, comparável à do vento: fluido e arrasador. É como o vento, também às vezes doce, brando, claro, bailando alegre em torno de seu oculto núcleo de fogo.

O amor é, portanto, na sua origem, liberação e aventura. Por definição, anti-burguês. O próprio da vida burguesa não é o amor, é o casamento, que é o amor institucionalizado, disciplinado, integrado na sociedade. O casamento é um contrato: duas pessoas se conhecem, se gostam, se sentem atraídas uma pela outra e decidem viver juntas. Isso poderia ser uma coisa simples, mas não é, pois há que se inserir na ordem social, definir direitos e deveres perante os homens e até perante Deus. Carimbado e abençoado, o novo casal inicia sua vida entre beijos e sorrisos. E risos e risinhos dos maledicentes. Por maior que tenha sido a paixão inicial, o impulso que os levou à pretoria ou ao altar (ou a ambos), a simples assinatura do contrato já muda tudo. Com o casamento o amor sai do marginalismo, da atmosfera romântica que o envolvia, para entrar nos trilhos da institucionalidade. Torna-se grave. Agora é construir um lar, gerar filhos, criá-los, educá-los até que, adultos, abandonem a casa para fazer sua própria vida. Ou seja: se corre tudo bem, corre tudo mal. Mas, não radicalizemos: há exceções — e dessas exceções vive a nossa irrenunciável esperança

Conheci uma mulher que costumava dizer: não há amor que resista ao tanque de lavar (ou à máquina, mesmo), ao espanador e ao bife com fritas. Ela possivelmente exagerava, mas com razão, porque tinha uns olhos ávidos e brilhantes e um coração ansioso. Ouvia o vento rumorejar nas árvores do parque, à tarde incendiando as nuvens e imaginava quanta vida, quanta aventura estaria se desenrolando naquele momento nos bares, nos cafés, nos bairros distantes. À sua volta certamente não acontecia nada: as pessoas em suas respectivas casas estavam apenas morando, sofrendo uma vida igual à sua. Essa inquietação bovariana prepara o caminho da aventura, que nem sempre acontece. Mas dificilmente deixa de acontecer. Pode não acontecer a aventura sonhada, o amor louco, o sonho que arrebata e funda o paraíso na terra. Acontece o vulgar adultério – o assim chamado -, que é quase sempre decepcionante, condenado, amargo e que se transforma numa espécie de vingança contra a mediocridade da vida. É como uma droga que se toma para curar a ansiedade e reajustar-se ao status quo. Estou curada, ela então se diz — e volta ao bife com fritas.

Mas às vezes não é assim. Às vezes o sonho vem, baixa das nuvens em fogo e pousa aos teus pés um candelabro cintilante. Dura uma tarde? Uma semana? Um mês? Pode durar um ano, dois até, desde que as dificuldades sejam de proporção suficiente para manter vivo o desafio e não tão duras que acovardem os amantes. Para isso, o fundamental é saber que tudo vai acabar. O verdadeiro amor é suicida. O amor, para atingir a ignição máxima, a entrega total, deve estar condenado: a consciência da precariedade da relação possibilita mergulhar nela de corpo e alma, vivê-la enquanto morre e morrê-la enquanto vive, como numa desvairada montanha-russa, até que, de repente, acaba. E é necessário que acabe como começou, de golpe, cortado rente na carne, entre soluços, querendo e não querendo que acabe, pois o espírito humano não comporta tanta realidade, como falou um poeta maior. E enxugados os olhos, aberta a janela, lá estão as mesmas nuvens rolando lentas e sem barulho pelo céu deserto de anjos. O alívio se confunde com o vazio, e você agora prefere morrer.

A barra é pesada. Quem conheceu o delírio dificilmente se habitua à antiga banalidade. Foi Gogol, no Inspetor Geral quem captou a decepção desse despertar. O falso inspetor mergulhara na fascinante impostura que lhe possibilitou uma vida de sonho: homenagens, bajulações, dinheiro e até o amor da mulher e da filha do prefeito. Eis senão quando chega o criado, trazendo-lhe o chapéu e o capote ordinário, signos da sua vida real, e lhe diz que está na hora de ir-se pois o verdadeiro inspetor está para chegar. Ele se assusta: mas então está tudo acabado? Não era verdade o sonho? E assim é: a mais delirante paixão, terminada, deixa esse sabor de impostura na boca, como se a felicidade não pudesse ser verdade. E no entanto o foi, e tanto que é impossível continuar vivendo agora, sem ela, normalmente. Ou, como diz Chico Buarque: sofrendo normalmente.

Evaporado o fantasma, reaparece em sua banal realidade o guarda-roupa, a cómoda, a camisa usada na cadeira, os chinelos. E tudo impregnado da ausência do sonho, que é agora uma agulha escondida em cada objeto, e te fere, inesperadamente, quando abres a gaveta, o livro. E te fere não porque ali esteja o sonho ainda, mas exatamente porque já não está: esteve. Sais para o trabalho, que é preciso esquecer, afundar no dia-a-dia, na rotina do dia, tolerar o passar das horas, a conversa burra, o cafezinho, as notícias do jornal. Edifícios, ruas, avenidas, lojas, cinema, aeroportos, ônibus, carrocinhas de sorvete: o mundo é um incomensurável amontoado de inutilidades. E de repente o táxi que te leva por uma rua onde a memória do sonho paira como um perfume. Que fazer?
Desviar-se dessas ruas, ocultar os objetos ou, pelo contrário, expor-se a tudo, sofrer tudo de uma vez e habituar­-se? Mais dia menos dia toda a lembrança se apaga e te surpreendes gargalhando, a vida vibrando outra vez, nova, na garganta, sem culpa nem desculpa. E chegas a pensar: quantas manhãs como esta perdi burramente! O amor é uma doença como outra qualquer.

E é verdade. Uma doença ou pelo menos uma anormalidade. Como pode acontecer que, subitamente, num mundo cheio de pessoas, alguém meta na cabeça que só existe fulano ou fulana, que é impossível viver sem essa pessoa? E reparando bem, tirando o rosto que era lindo, o corpo não era lá essas coisas… Na cama era regular, mas no papo um saco, e mentia, dizia tolices, e pensar que quase morro!…

Isso dizes agora, comendo um bife com fritas diante do espetáculo vesperal dos cúmulos e nimbos. Em paz com a vida. Ou não.

Ferreira Gullar, "A estranha vida banal"

Os que herdam

O estranho não lhe era estranho. Alguma coisa em sua aparência repeliu e ao mesmo tempo atraiu Arie Tselnik desde o primeiro olhar, se é que aquele era o primeiro olhar: Arie Tselnik tinha quase a impressão de que se lembrava daquele rosto e dos compridos braços que chegavam aos joelhos, uma lembrança obscura, como se fosse de uma vida anterior.

O homem estacionou seu carro bem em frente ao portão do pátio, um automóvel empoeirado, de cor bege. E no vidro traseiro, assim como nos vidros laterais, havia um mosaico de adesivos coloridos, toda sorte de exclamações, declarações, alertas e lemas. Ele trancou a porta do carro, mas deteve-se para examinar diligentemente uma porta após outra, verificando se estavam todas bem trancadas. Depois deu uma leve palmada no capô,e logo outra, como se o carro fosse um velho e fiel cavalo que ele prendia à estaca da cerca, sinalizando-lhe com carinhosos tapinhas que a espera não seria longa. Depois disso abriu o portão e dirigiu-se à varanda da frente, sombreada por um caramanchão de videiras. Seu andar parecia saltitante e um pouco dolorido, como se pisasse descalço em areia quente.

De seu lugar, na cadeira de balanço suspensa no canto da varanda, vendo sem ser visto, Arie Tselnik observava o visitante desde que ele estacionara o carro. Mas, por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar quem era esse estranho-não-tão-estranho.

Onde o encontrara, quando o encontrara? Em uma de suas viagens ao exterior? Nos exercícios militares de reservistas? No escritório? Na universidade? Ou talvez ainda nos tempos de escola? A fisionomia do estranho tinha uma expressão matreira e radiante, como se tivesse conseguido dar um grande golpe e agora se alegrasse com a desgraça alheia. Por trás daquele rosto estranho, ou por baixo dele, delineava-se o esboço impreciso de um rosto conhecido, incomodativo, um rosto inquietante: o rosto de quem já lhe fizera mal alguma vez? Ou, pelo contrário, de alguém a quem você já tivesse feito um mal agora esquecido?

Como um sonho do qual nove décimos tivessem submergido e só um pequeno pedaço ainda fosse visível. Arie Tselnik decidiu então não se levantar do lugar para ir ao seu encontro, mas recebê-lo ali, na cadeira suspensa, na varanda à entrada da casa.

Amós Oz, "Cenas da vida na aldeia"

sexta-feira, julho 26

Os grandes na alma e no corpo

 


No paraíso


Eu leio como desejaria que me lessem, isto é, bem lentamente. Ler um livro, para mim, é ausentar-me durante quinze dias em companhia do autor.
André Gide

A mecânica celeste ilusória.

Hoje os prédios nem têm mais apartamentos no andar térreo. No térreo ficam as portarias, e acima das portarias, dois ou três andares de garagens, e só então as casas, evitando o mundo. Todos na torcida por um mundo límpido, branco, imaculado, revestido, recoberto, sem compreender que o mundo é detrito, resto de uma grande e primordial explosão se dissipando universo afora. O universo é uma onda de choque que desarruma. A mecânica celeste é ilusória.

Toinho Castro, “Sonho, lama e caos”


Carlota

Ainda deitada, notei pela janela que chovia lá fora. Como é que eu ia fazer? Ir de casa em casa, de guarda-chuva aberto, carregando a pesada bolsa de cosméticos, na esperança de que houvesse algumas quarentonas interessadas em cremes e outros produtos de beleza e que pudessem pagar à vista, em dinheiro? Chega de cheques pré-datados, nem tenho coragem de passar no banco, sei que os cheques que burramente aceitei na semana passada foram devolvidos.

Agora me lembro, acabou o café, e como posso levantar da cama sem tomar uma xícara grande de café? Preciso ir ao médico para ver que dor é essa que sinto no abdome, do lado esquerdo. O que a gente tem no lado esquerdo da barriga? Estômago? Mas não é estômago, é mais em cima, mais para o lado. O que tem aqui em cima, deste lado? Fígado, vesícula?

Moro sozinha. Sou solteirona. Minha mãe, que sofre de Alzheimer, vive com a minha irmã viúva, que tem recursos para cuidar dela e mora numa casa maior do que o cubículo onde resido. Aos domingos eu vou visitá-la e minha mãe nem me reconhece mais. Coitada dela. Pensando bem, coitada da minha irmã, que é quem sofre.

Levantei-me da cama e sem a xícara grande de café eu me sentia como um zumbi. Nem tive coragem de tomar banho. Para falar a verdade, antigamente eu tomava banho todos os dias, às vezes dois banhos por dia, um ao levantar e outro à noite, quando ia para a cama. Depois passei a tomar um banho apenas por dia, e ultimamente tomo banho dia sim, dia não, e já fiquei três dias sem tomar banho, lavando-me no bidê e limpando o sovaco com a esponja e passando desodorante. Não posso ir fedendo tocar a campainha da porta e dizer, madame, quer comprar cremes, perfumes e outros produtos de beleza?

Tive dificuldade para arrumar os produtos na mala. Como foi que esqueci de comprar o maldito café? Revistei os armários para ver se achava um pacote perdido, mas só tenho dois armários e foi fácil ver que não havia nenhum café em casa.

Moro num conjugado que nem cozinha tem, abro uma porta como se fosse um armário e lá está uma boca de gás alimentada por um botijão, onde tenho que fazer o meu café. No banheiro tem um chuveiro elétrico, a companhia do gás diz que o meu apartamento não tem a ventilação adequada para receber a instalação de gás. Já desisti de pedir.

Afinal consegui me vestir. Carregar um guarda-chuva e uma mala pesada cheia de potes e outras embalagens de vários tamanhos não é fácil. Quando cheguei na rua notei que não havia preparado o meu roteiro de visitas. O café estava fazendo falta, eu ainda nem acordara direito. Tive que voltar para casa e tirar a capa, colocar o guarda-chuva pingando no banheiro e sentar na cama, abrir o meu caderninho e escrever numa folha de papel o meu roteiro de visitas daquele dia. Depois de fazer isso, saí novamente.

Fiquei esperando o ônibus que me levaria para o setor da cidade que eu ia cobrir naquele dia. Moro num bairro perto da favela, o próprio bairro aos poucos está se favelizando, mas eu não posso pagar um aluguel mais caro e assim tenho que morar ali mesmo. Na minha vizinhança só tem um botequim, sujo e malfrequentado, eu evitava botar os pés nele. Mas naquele dia ou eu tomava um café ou caía dura no chão.

Entrei no botequim. Como sempre, havia um monte de homens mal-encarados, alguns tomando média com pão e manteiga, outros tomando cachaça, não sei como esses sujeitos conseguem tomar cachaça tão cedo.

Pedi uma xícara grande de café puro. Eu esperava que servissem um café meio nojento, como esses que dizem que é batizado com chicória para render mais, porém o café estava uma maravilha. Nunca pensei que um pé-sujo como aquele, em que o garçom usava um jaleco imundo, pudesse servir um café tão saboroso.

O prazer que senti apagou o cheiro ruim do recinto e me fez esquecer a presença dos cachaceiros e dos pilantras que tomavam a média com pão e manteiga. Senti vontade de pedir outra xícara, mas fiquei com medo de ela não ser tão gostosa e estragar o gostinho bom que a primeira tinha deixado na minha boca.

Paguei o café, peguei o guarda-chuva, mas quando procurei a mala ela havia sumido.

Perguntei ao garçom pela minha mala. Ele respondeu que não sabia do que se tratava, que eu não chegara com nenhuma mala. Ela chegou com uma mala, essa moça? Os cachaceiros e os tomadores de média com pão e manteiga disseram que eu não havia chegado com mala nenhuma.

Eu disse que ia dar queixa na polícia. Pode ir, respondeu o garçom, e voltou a servir os outros clientes. Eu ia perder o meu emprego e aquilo me deixou com tanta raiva que eu gritei, só tem ladrão neste país, alguém roubou a minha mala. Ladrões, gritei, ladrões.

O lado esquerdo da minha barriga doía. Comecei a chorar. Um sujeito que estava perto me disse, com um bafo forte de cachaça que entrava pelo meu nariz como se fosse uma broca de dentista, calma, madame, não se desespere, para tudo há um jeito.

Enojada, afastei-me do homem e saí correndo, subi as escadas do meu prédio, lá não tem elevador, e entrei, ainda chorando, no meu apartamento. Deixei o guarda-chuva pingando na sala e sentei na única poltrona que eu tinha.

Quando enxuguei os olhos vi que ao lado da porta, encostada na parede, estava a minha mala. Corri até lá, olhei, abri. Dentro estavam todos os produtos. Mas eu havia saído com a mala, largara ela no chão do café, eu tinha certeza. Havia acontecido um milagre ou eu estava ficando biruta?

A primeira coisa que eu ia fazer quando saísse era comprar dois quilos de café.
Rubem Fonseca, "Ela e Outras Mulheres"

quinta-feira, julho 25

Não se deixe afogar

 


A caminho do planetário

Se, como fez uma vez Hillel com a doutrina judaica, se tivesse de enunciar a doutrina dos antigos em toda concisão, em pé sobre uma perna, a sentença teria de dizer: "A Terra pertencerá unicamente àqueles que vivem das forças do cosmos". Nada distingue tanto o homem antigo do moderno quanto sua entrega a uma experiência cósmica que este último mal conhece. O naufrágio dela anuncia-se já no florescimento da astronomia, no começo da Idade Moderna. Kepler, Copérnico, Tycho Brahe certamente não eram movidos unicamente por motivos científicos. Mas, no entanto, há no acentuar exclusivo de uma vinculação ótica com o universo, ao qual a astronomia muito em breve conduziu, um signo precursor daquilo que tinha de vir. O trato antigo com o cosmos cumpria-se de outro modo: na embriaguez. É embriaguez, decerto, a experiência na qual nos asseguramos unicamente do mais próximo e do mais distante, e nunca de um sem o outro. Isso quer dizer, porém, que somente na comunidade o homem pode comunicar em embriaguez com o cosmos. É o ameaçador descaminho dos modernos considerar essa experiência como irrelevante, como descartável, e deixá-la por conta do indivíduo como devaneio místico em belas noites estreladas. Não, ela chega sempre e sempre de novo a seu termo de vencimento, e então povos e gerações lhe escapam tão pouco como se patenteou da maneira mais terrível na última guerra, que foi um ensaio de novos, inauditos esponsais com as potências cósmicas. Massas humanas, gases, forças elétricas foram lançadas ao campo aberto, correntes de alta frequência atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo e profundezas marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-se poços sacrificiais na Mãe Terra. Essa grande corte feita ao cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica. Mas, porque a avidez do lucro da classe dominante pensava resgatar nela sua vontade, a técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue. Dominação da Natureza, assim ensinam os imperialistas, é o sentido de toda técnica. Quem, porém, confiaria em um mestre-escola que declarasse a dominação das crianças pelos adultos como o sentido da educação? Não é a educação, antes de tudo, a indispensável ordenação da relação entre as gerações e, portanto, se se quer falar de dominação, a dominação das relações entre as gerações, e não das crianças? E assim também a técnica não é dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza e humanidade. Os homens como espécie estão, decerto, há milênios, no fim de sua evolução; mas a humanidade como espécie está no começo. Para ela organiza-se na técnica como physis na qual seu contato com o cosmos se forma de modo novo e diferente do que em povos e famílias. Basta lembrar a experiência de velocidades, por força das quais a humanidade prepara-se agora para viagens a perder de vista no interior do tempo, para ali deparar com ritmos pelos quais os doentes, como anteriormente em altas montanhas ou em mares do Sul, se fortalecerão. Os Luna Parks são uma pré-forma de sanatórios. O calafrio da genuína experiência cósmica não está ligado àquele minúsculo fragmento de natureza que estamos habituados a denominar "Natureza". Nas noites de aniquilamento da última guerra, sacudiu a estrutura dos membros da humanidade um sentimento que era semelhante à felicidade do epilético. E as revoltas que se seguiram eram o primeiro ensaio de colocar o novo corpo em seu poder. A potência do proletariado é o escalão de medida de seu processo de cura. Se a disciplina deste não o penetra até a medula, nenhum raciocínio pacifista o salvará. O vivente só sobrepuja a vertigem do aniquilamento na embriaguez da procriação.

Walter Benjamin, "Rua de mão única"

O estrangeiro

— Quem mais amas, homem enigmático, responde: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?

— Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.

— Teus amigos? — Você emprega uma palavra cujo sentido até hoje desconheço.

— Tua pátria? — Ignoro a que latitude está situada.

— A beleza? — Eu gostaria de amá-la, deusa e imortal.

— O ouro? — Odeio-o tanto quanto você a Deus.

— Que amas então, extraordinário estrangeiro? — Amo as nuvens... as nuvens que passam ao longe... as nuvens maravilhosas!

Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"

A 'seda'


O erudito é como o corvo que alimenta os seus filhotes vomitando o que comeu. O pensador é como o bicho da seda, que não nos dá folhas de amoreira, mas seda.
Lin Yutang

Uma pedrada no charco

E não abrandava. Podia a “vespa” saltar nos buracos da estrada, moer-lhe o fígado e os rins, cortar-lhe a respi-ração. Iam muito em breve fraquejar-lhe as mãos exaustas. Os pés, doridos daquele esforço atroz, relaxar-se-iam, soltar-se-iam, gratos, do estribo. E seria o fim. Embora! Não havia de ceder. Pouco lhe importavam já o Gonçalo e a Mané, o resto do mundo, o motivo, se motivo houvera, daquele desafio. O duelo era só de si para consigo, o duelo era com a noite vasta.

Gonçalo ultrapassava-o agora, numa rajada de insânia. Levava o lenço de seda verde amarrado ao pescoço, esticadas as pontas para trás, pelo vento.

Não. Não queria consentir. Tinha de reconquistar a frente. Mais depressa, ainda mais depressa! Escuros rumores, inimigos, golpeavam-no como setas. Uma lua de pedra no céu, a ameaçá-lo. E o outro a distanciar-se. Acelerou. Viesse a morte, que viesse! A estrada devorada estremecia, vibrava como uma cobra pisada. Os seixos pulavam e faiscavam adiante do guiador. Já não saberia parar. Já lhe parecia impossível parar.

Distante, perdida, quase esquecida, toda a vida anterior. Só ele no meio da noite e dentro daquela euforia dolorosa, terrível, sobre a “vespa” veloz, gelada pelo hálito da morte. Mais depressa, ainda mais depressa!

De repente, aquele estrondo. E, lá adiante, uma imagem minúscula, absurda, tão nítida, tão sem sentido, como num documentário de cinema: a “vespa” pequenina saindo da estrada, guinando, chocando com uma árvore, arremessada ao ar, e aquele boneco de feltro, desarticulado, voando até cair inerte sobre as ramas cloróticas, numa poça de luz.

Começou a travar, suavemente. Quase não podia dar um passo, ao largar a “vespa”. Tinha as pernas hirtas, como se houvessem sido prensadas entre blocos de ferro.

Olhou. E logo voltou a cara. Nem uma esperança sequer de lhe pedir perdão! Gonçalo devia ter caído, com certeza, de cabeça para baixo. Estava todo torcido, o pescoço à banda .

Ricardo venceu finalmente o pavor que o lacerava e curvou-se sobre aquela caricatura morta. Voltou-o com jeitinho . Não havia uma só mancha de sangue no rosto duro, muito branco. Encostou-lhe o ouvido ao peito. Nada. Já não respirava.

Urbano Tavares Rodrigues

quarta-feira, julho 24

Descansa

 


Meandros de um rio por inventar

O português moçambicano — ou ainda, nesta altura, o português em Moçambique — é ele próprio um lugar de conflitos e de ambiguidades. A adesão moçambicana à lusofonia está carregada de reservas, aparentes recusas, desconfiadas aderências. O que eu gostaria de mostrar aqui é que esse caminho em ziguezague não resulta de capricho dos dirigentes, mas de ambivalências da História.

Em 1975, ano da Independência Nacional, mais de 60% dos moçambicanos não falava português. Vinte e cinco anos depois existem ainda 40% de moçambicanos que não falam português. Mesmos os que têm essa competência fazem-no como segunda língua. Apenas 3% dos moçambicanos têm o português como língua materna.

O meu país é um território de muitas nações. O idioma português é uma língua de uma dessas nações — um território cultural inventado por negros urbanizados, mestiços, indianos e brancos.

Sendo minoritário e circunscrito às cidades, esse grupo ocupa lugares-chave nos destinos políticos e na definição daquilo que se entende por moçambicanidade.

Esse é o Moçambique lusófono. Esse é o país que se senta nos fóruns que decidem sobre a lusofonia. Os outros moçambicanos das outras nações moçambicanas correm o risco de ficar de fora, afastados dos processos de decisão, excluídos da modernidade.

A política portuguesa em África foi orientada no sentido de fabricar uma camada social — os assimilados — capaz de gerir a máquina do Estado colonial. Os candidatos a assimilados deviam virar costas à sua religião, à sua cultura, às suas raízes. Uma das fronteiras entre os chamados civilizados e os não civilizados (os denominados indígenas) passava pelo domínio da língua do colonizador. A administração portuguesa aceitava conceder o estatuto de cidadãos de segunda classe a estes portugueses de pele preta, na esperança de que eles se viessem a tornar os futuros reprodutores da instituição colonial. Estava-se forjando a ordem colonial dos nossos dias — um colonialismo indigenizado, um colonialismo que dispensa colonos.

Conto-vos agora uma pequena história. Fala-vos de um jovem camponês chamado Eduardo Chivambo Mondlane. Este criador de cabras foi levado para os Estados Unidos onde se formou em Antropologia. Em 1961, Eduardo Mondlane regressava a Moçambique como funcionário das Nações Unidas. O regime colonial já reconhecera o perigo que representava esta figura pública. Mas o governo não podia impedir a sua entrada em Moçambique.

Pois nessa noite, na noite em que chegou a Lourenço Marques, estava convocado um comício na Associação dos Negros de Moçambique. Ali se aglomeraram milhares de pessoas para escutarem a palavra libertadora daquele que era esperado como um Messias. Mondlane deveria falar numa varanda de um velho edifício que se abria para a praça repleta de gente.

Quando se dirigia para o varandim, agentes da Pide chamaram-no à parte e disseram-lhe: podia usar da palavra, sim, mas não podia falar de política, não podia falar de pobreza, não podia referir nada sobre o povo de Moçambique nem o que se passava em África. A lista das interdições era tão extensa e rigorosa que pouco ou nada restava para ser dito.

Mondlane, mesmo assim, encaminhou-se para a varanda e no seu rosto era visível essa procura do que dizer. Então, contou a seguinte história: “Certa vez um caminhante foi recebido por uma família rural que lhe ofereceu abrigo e repouso antes de prosseguir viagem. Ao fim da tarde, o anfitrião conduziu o viajante ao quintal e mostrou a criação na sua capoeira. Entre as galinhas havia, estranhamente, uma águia. Perdera o seu porte real, anichada (ou agalinhada) num canto, piando como galinha e debicando grãos de milho no chão. O viajante ficou impressionado com a visão daquela ave tão nobre, ali despersonalizada como se fosse apenas uma entre muitas galinhas.

— Ela acredita ser uma galinha — explicou o dono da casa.

De noite, o viajante não tomou sono, assaltado por aquela impressão que lhe causara a visita ao galinheiro. E de madrugada, muito cedo, já ele entrava na capoeira e, pegando na águia, a conduziu para o descampado. Lançou a ave nos ares enquanto incitava:

— Voa, tu és uma águia.

E a ave, sem jeito, se despenhava no chão. Repetiu a tentativa várias vezes. Sem resultado. Até que foi parar a um desfiladeiro. Então, segurando o pássaro num braço, se abeirou do abismo e lhe repetiu:

— Voa, tu és uma águia.

E de um sacão lançou o bicho no vazio do precipício. Então, a águia iniciou um esplendoroso voo e venceu as alturas, cruzando o horizonte para além de si mesma”.
Mia Couto, "E se Obama fosse africano?"

Ler um romance

De que é feito o centro do romance? De tudo que faz o romance, poderíamos responder. Mas estamos convencidos de que esse centro está longe da superfície do romance, que seguimos palavra por palavra. Imaginamos que se situa no plano de fundo e é invisível, difícil de localizar, elusivo, quase dinâmico. Otimistas, achamos que os indicadores desse centro estão em toda parte e que o centro conecta todos os detalhes do romance, tudo que encontramos na superfície da vasta paisagem. Discutirei até que ponto esse centro é real, até que ponto é imaginário.

Porque sabemos – ou supomos – que o romance tem um centro, agimos, enquanto leitores, exatamente como o caçador que vê um indício em cada folha e cada galho quebrado e os examina com toda a atenção, à medida que avança pela paisagem. Vamos em frente, sentindo que cada nova palavra, objeto, personagem, protagonista, conversa, descrição, detalhe, todas as qualidades linguísticas e estilísticas do romance e as reviravoltas de sua narrativa sugerem e apontam para algo além do que é aparente. Essa convicção de que o romance tem um centro nos leva a crer que um detalhe aparentemente irrelevante pode ser significativo e que o sentido de tudo que está na superfície do romance pode ser muito diferente. O romance é uma narrativa aberta a sentimentos de culpa, paranoia e ansiedade. A sensação de profundidade que nos proporciona a leitura de um romance, a ilusão de que o livro nos imerge num universo tridimensional se devem à presença do centro – real ou imaginário.

O que basicamente separa o romance do poema épico, da novela medieval ou da tradicional narrativa de aventuras é a ideia de um centro. O romance apresenta personagens muito mais complexas que as da epopeia; focaliza gente comum e escava todos os aspectos da vida cotidiana. Mas deve essas qualidades e esses poderes à presença de um centro em algum lugar e ao fato de que o lemos com esse tipo de esperança. Quando nos revela detalhes mundanos da vida e nossas pequenas fantasias, hábitos cotidianos e objetos conhecidos, lemos com curiosidade – na verdade, com espanto –, porque sabemos que isso indica um significado mais profundo. Cada aspecto da paisagem geral, cada folha, cada flor é interessante e intrigante, porque esconde um significado oculto.

O romance pode se dirigir às pessoas da era moderna, na verdade a toda a humanidade, porque é uma ficção tridimensional. Pode falar de experiência pessoal, do conhecimento que adquirimos através dos sentidos e, ao mesmo tempo, pode oferecer um fragmento de conhecimento, uma intuição, uma pista sobre a coisa mais profunda – em outras palavras, sobre o centro, ou o que Tolstói chama de sentido da vida (ou como quer que o chamemos), esse local difícil de alcançar e que otimisticamente pensamos que existe. O sonho de alcançar o conhecimento mais profundo, mais precioso do mundo e da vida sem ter de enfrentar as dificuldades da filosofia ou as pressões sociais da religião – e de chegar lá com base em nossa própria experiência, usando nosso próprio intelecto – é um tipo de esperança muito igualitário, muito democrático.

Foi com grande intensidade e com essa esperança específica que li romances entre os 18 e os 30 anos. Cada romance que eu lia, sentado em minha sala em Istambul, proporcionava-me um universo tão rico em detalhes quanto qualquer enciclopédia ou museu, tão humano quanto minha própria existência e repleto de exigências, consolações e promessas que, em profundidade e extensão, só eram comparáveis às encontradas na filosofia e na religião. Eu lia romances como se estivesse sonhando, esquecendo tudo o mais, para adquirir conhecimento do mundo, para construir a mim mesmo e formar minha alma.

E. M. Forster diz, em Aspectos do Romance, que “o teste final de um romance será nosso afeto por ele”. Para mim, o valor de um romance está em seu poder de provocar uma busca por um centro que também podemos ingenuamente projetar no mundo. Para simplificar: a real medida desse valor deve ser a capacidade do romance de despertar a sensação de que a vida é, com efeito, exatamente assim. O romance deve se dirigir a nossas principais ideias sobre a vida e deve ser lido com a esperança de que fará isso.

Orhan Pamuk  

Alegrias da velhice

Até ficar velho, operação antigamente simples e natural, resumível na venerável sentença “quem não morre fica velho”, está se tornando cada vez mais complicado, a ponto de, receio eu, causar algumas crises de identidade nesse cada vez mais vasto contingente da população. Acho que vou sugerir a criação, nas faculdades de Filosofia, de um curso de epistemologia da velhice, porque a confusão, pelo menos entre os menos ilustrados, como eu, aumenta a cada dia. Talvez até os próprios geriatras se beneficiem desse estudo, porque tenho praticamente certeza de que, entre eles, há divergências sobre o conceito de “velho”.

A mim, confesso, já enche um pouco o saco esse negócio. Começou, se não me falham os rateantes neurônios, com essa conversa de terceira idade, inventada pelos americanos, que são muito bons de eufemismo, como testemunha a exemplar frase “lide com preconceito extremo”, que, dizem, a CIA usava quando ordenava um assassinato. Passou a não pegar bem chamar velho de velho mesmo e agora a velharada é agredida com designações tais como “boa idade”, “melhor idade”, “feliz idade” e outras qualificações ofensivas. E, dentro dessas categorias, já me contaram que há subcategorias. Ninguém mais é velho, fica até feio o sujeito hoje em dia dizer que é velho.

De minha parte, reivindico apenas alguns direitos, entre os quais devo ressaltar não ser obrigado a entrar na fila dos idosos dos bancos. Aliás, a não entrar em fila de idoso nenhum, a não ser que, na hora, o que raramente sucede, isso apresente alguma vantagem. Fila de banco é uma furada séria, porque não só alguns de nossa variegada turma ou são surdos ou requerem primeiros socorros se começam a lhes explicar o que significa “o sistema caiu”, por exemplo. Me contaram que, numa agência aqui do bairro, uma senhora teve um pitaco, porque pensou que isso queria dizer que o banco falira e suas economias de viúva tinham ido juntar-se à vaca no brejo.


Imagino que, pelo tom acima, talvez alguém entre vocês tenha antecipado que vou lembrar outra vez o que Jorge Amado, entre as incontáveis peças de sabedoria que me presenteou ao longo de nossa convivência de décadas, me disse a respeito da velhice. Aliás, vou dar um furo de reportagem — sou do tempo do furo de reportagem, espero ser cumprimentado pela direção do jornal. Jorge não me falou somente uma vez sobre a velhice, embora não fosse seu assunto favorito. Há muitas outras frases, mas não se destaca entre elas somente a que divulguei aqui: “Compadre, já me falaram muito das alegrias da velhice, mas ainda não me apresentaram a nenhuma.” Teve outra, saquem agora o tremendo furo: “Compadre, não importa o que lhe digam, a gente não aprende nada com a velhice; a única coisa que a gente aprende com a velhice é que velhice é uma merda.”

Entrevendo os setentinha a média distância, temo que, como tudo mais que o compadre me ensinou, isso tudo seja a impiedosíssima verdade. Pode ser que, a depender da categoria empregada, eu não seja velho (cartas sobre o que é ser velho, principalmente as escritas por velhos como eu, que vão dizer que a velhice está na mente etc. etc., para o editor, por caridade), mas, outro dia, não lembro onde, fui descer dois degraus do palco aonde havia antes subido e quatro jovens pressurosas me apararam as costas e me seguraram os cotovelos como se eu fosse um hipopótamo paraplégico tentando um salto ornamental. Eu talvez pareça um hipopótamo paraplégico, mas sou no máximo uma anta com artrite e ainda tenho lepidez bastante para descer um meio-fio com relativa confiança. (A velhice não está na mente, está nas juntas.)

Quanto ao aspecto didático da velhice, também parece confirmar-se o que me falou meu amigo. A vida pode ensinar alguma coisa e geralmente ensina, embora quase sempre a gente aprenda tarde demais — besteira, esse negócio de “nunca é tarde demais”, costuma ser tarde demais mesmo. Mas a velhice mesmo só ensina o que ele disse. Certo, talvez eu não seja velho o suficiente para esta confirmação, mas os indícios são claros. Calçar meias, para citar um caso, já me parece uma modalidade olímpica e nem me passa pela cabeça alcançar um centésimo do índice. Um dos meus joelhos volta e meia faz um barulho alarmante, dói uma besteirinha e depois volta ao silêncio enigmático com que minhas noites são atormentadas por visões de ossinhos se esfarelando, enquanto eu vou à banca de jornal. E por aí vai, o pudor me cala.

Mas Jorge não testemunhou o que hoje testemunho. As alegrias da velhice, afinal, não são meramente individuais. E não é que agora vejo o Brasil a transformar-se mesmo num grande canteiro de obras? Falam até que o Bolsa Família será gradualmente extinto, pois o governo vai chamar cada beneficiário e dar a ele um emprego. Claro, não há empregos nem para os que estão fora do BF, mas também não se pode querer tudo. E as coletividades que agora verão instalar-se a concórdia e a prosperidade, através dos Territórios da Cidadania? Até mesmo as eleições municipais, frequentemente causa de rancor e hostilidade, deverão ser bem mais tranquilas. E, finalmente, o Big Brother Brazil deixou de ocupar o primeiro lugar entre as contribuições do Brasil para o progresso da Humanidade neste século. Agora, através da visão e da generosidade do Nosso Guia, o Brasil deu um passo muito à frente de Orwell e até do BBB. Não disse ele que d. Dilma Rousseff é a mãe do PAC? O PAC não é o nascimento de um novo Brasil, para o povo e não para a Zelite? Então, além do Nosso Guia, temos a nossa Big Mother. Perfeito, até do ponto de vista psicanalítico. A única desvantagem sobre o BBB é que eles não deixam a gente ver o que eles fazem, mesmo entrando compulsoriamente para o pay-per-view.
João Ubaldo Ribeiro, "O rei da noite"

terça-feira, julho 23

Multifuncional

 


O passageiro clandestino

O passageiro tinha subido, já noite fechada, das entranhas da carvoeira, para se esconder numa clarabóia do convés, sob a qual havia espaço suficiente para um homem se deitar, como num esquife. (Já ali tinham viajado outros, durante dias e até semanas, e um deles, por sinal, apanhado pela dura invernia do Norte – os cordames eram estendais de gelo! – com as roupinhas leves em que vinha do Brasil, ficara tolhido para o resto dos seus dias.) Não comia desde que, manhã cedo, lhe tinham levado o café amargoso e a bucha de pão; a fome roía-o, e, depois do calor abafante das caldeiras, o frio húmido da noite inteiriçou-o. Ali encaixado, ouviu vozes de comando, risos, passos de homens que desciam a prancha, os ecos de ferro do navio despejado. Esperou que, tudo sossegado, o viessem pôr em liberdade. Mas o tempo corria, naquela imobilidade, e a impaciência dele cresceu: Que raio esperavam eles para o tirar da toca? Iriam esquecê-lo, deixá-lo a bordo sozinho, metido naquela urna, a morrer de fome e frio?... Haveria dificuldades imprevistas ao seu desembarque?... A noite avançava com um vagar exasperante, e ele tinha pressa. Apertava ao corpo, para se aquecer, o saco onde encerrava os parcos haveres. Tinha entrevisto na noite, ao chegar ali, os perfis dos barracões do porto, mais longe fábricas, prédios, o clarão mortiço da cidade. Estava na América, a dois passos do trabalho e do pão, a um salto do seu destino. E o coração batia-lhe de anseio. Já tinha regularizado contas com os marujos que o tinham posto a bordo, escondido e alimentado. Se havia mais alguém por trás deles, isso não era da sua conta. Restava-lhe algumas dolas no fundo de um bolso das calças. Junto delas, retinha na palma da mão suada um papel puído, com um endereço, esse ponto perdido na imensidade da América desconhecida: Patchogue ou coisa assim, para lá de Nova Iorque, em Long Island, a quantas léguas seria aquilo de Baltimore, e quanto teria ele de palmilhar às cegas, para alcançar o seu destino?! (Se lá chegasse...) E uma data de números, de portas e ruas, isso ele não entendia, não entendia nada, não sabia patavina de inglês, só sabia que estava ali à espera que dispusessem dele, para começar vida nova, ou então... Sozinho, diante do desconhecido. Não conhecia ninguém, nesta terra envolta em noite e humidade. Inquietava-o pensar em tudo isso, ali imóvel, impotente, com o coração do tamanho dum feijão a zumbir-lhe no peito apertado.

Sonhava com a América havia muitos anos. Vinha em busca dela como, quatrocentos anos antes, e mais, os seus antepassados (isto é um modo de falar) tinham andado em demanda da Terra Firme, do El Dorado e do Xipango. Esses porém eram felizes, não precisavam de passaporte, o mundo era então um mistério aberto à curiosidade e ambição de todos! Ele viajava escondido, embora não buscasse oiro nem prata nem pimenta. Tinha dois braços, sabia pegar numa enxada ou picareta, queria trabalhar. E se o oiro não andava agora a pontapés, quem caminhasse de olhos no chão ainda podia topar aqui e ali com algum penny perdido – assim tinha ouvido dizer a um trangalhadanças dum alemão que da América voltara com dois patacos, e ele conhecera algures. A lenda do Novo Mundo ainda não tinha morrido no coração, ou seria no estômago?, dos homens. Para alcançá-lo, tomara pelo caminho mais curto, que é quase sempre o mais arriscado: a clandestinidade. Assim viera meter-se a bordo deste cargueiro de má - morte, um calhambeque a desfazer-se em ferrugem, asmático e claudicante.

José Rodrigues Miguéis, "Gente da Terceira Classe"