segunda-feira, julho 8

O delírio

O dia está alto e forte quando se levanta. Procura os chinelos embaixo da cama, tateando com os pés, enquanto se aconchega no pijama de flanela. O sol começa a cobrir o guarda-roupa, refletindo no chão o largo quadrado da janela.

Sente a cabeça endurecida na nuca, os movimentos tão difíceis. Os dedos dos pés são qualquer coisa gelada, impessoal. E os maxilares presos, cerrados. Vai até a pia, enche as mãos de água, bebe avidamente e ela se balança dentro dele como num frasco vazio. Molha a testa e respira desafogado.

Da janela enxerga a rua clara e movimentada. Guris brincam de botão à porta da Confeitaria Mascote, um carro buzina junto ao botequim. As mulheres, de sacola na mão, suadas, vêm da feira. Pedaços de nabos e alfaces se misturam à poeira da rua estreita. E o sol, puro e cruel, espalhado por cima de tudo.

Afasta-se com desgosto. Volta para dentro, olha a cama desfeita, tão familiar após a noite insone... A Virgem-Mãe agora se destaca, nítida e dominadora, sob a luz do dia. Com as sombras, ela também um vulto, é mais fácil descrer. Vai andando devagar, arrastando as pernas moles, levanta os lençóis, bate no travesseiro e mete-se lá dentro, com um suspiro. Torna-se tão humilde diante da rua viva e do sol indiferente... Na sua cama, no seu quarto, os olhos fechados, ele é rei.

Encolhe-se profundamente, como se lá fora chovesse, chovesse, e aqui uns braços silenciosos e mornos atraíssem-no e o transformassem num menino pequeno, pequeno e morto. Morto. Ah, é o delírio... É o delírio. Uma luz muito doce se espalha sobre a Terra como um perfume. A lua dilui-se lentamente e um sol-menino espreguiça os braços translúcidos... Frescos murmúrios de águas puras que se abandonam aos declives. Um par de asas dança na atmosfera rosada. Silêncio, meus amigos. O dia vai nascer.

Um queixume longínquo vem subindo do corpo da Terra... Há um pássaro que foge, como sempre. E ela, arquejante, rompe-se de súbito com estrondo, numa ferida larga... Larga como o Oceano Atlântico e não como um rio louco! Vomita borbotões de barro a cada grito.

Então o sol apruma o tronco e surge inteiro, poderoso, sangrento. Silêncio, amigos. Meus grandes e nobres amigos, ides assistir a uma luta milenar. Silêncio.

 S-s-s-s...

Da Terra rasgada e negra, surgem um a um, leves como o sopro de uma criança adormecida, pequenos seres de luz pura, mal pousando no solo os pés transparentes... Cores lilases flutuam no espaço como borboletas. Delgadas flautas erguem-se para o céu e melodias frágeis rebentam no ar como bolhas. As róseas formas continuam a brotar da terra ferida.

De repente, novo rugido. A Terra está tendo filhos? As formas dissolvem-se no ar, assustadas. Corolas murcham e as cores escurecem. E a Terra, os braços contraídos de dor, abre-se em novas fendas negras. Um forte cheiro de barro machucado arrasta-se em densa fumaça.

Um século de silêncio. E as luzes reaparecem tímidas, ainda trêmulas. Das grutas resfolegantes e sangrentas nascem outros seres, ininterruptamente. O sol esgarça as nuvens e respinga morno brilho. As flautas desfiam cantos agudos como suaves gargalhadas e as criaturas ensaiam uma dança levíssima... Sobre as feridas escuras pululam flores miúdas e cheirosas...

A Terra continuamente exaurida murcha, murcha em dobras e rugas de carne morta. A alegria dos nascidos está no auge e o ar é puro som. E a Terra envelhece rápida... Novas cores emergem dos rasgões profundos. O globo gira agora lentamente, lentamente, cansado. Morrendo. Um pequeno ser de luz nasce ainda, como um suspiro. E a Terra se some.

Seus filhos se assustam... interrompem as melodias e as danças ligeiras... Esbatem no ar as asas finas num zumbido confuso.

Um momento ainda brilham. Depois desfalecem exaustos e em cega linha reta afundam vertiginosamente no Espaço...

A vitória de quem foi? Ergue-se um homem pequenino, da última fila. Diz, a voz em eco, estranhamente perdida:

– Eu posso informar quem ganhou.

Todos gritam, subitamente furiosos.

– A galeria não se manifesta! A galeria não se manifesta!

O homenzinho intimida-se, porém continua:

– Mas eu sei! Eu sei: a vitória foi da Terra. Foi a sua vingança, foi a vingança...
Todos choram. “Foi a vingança” aproxima-se, aproxima-se, agiganta-se perto de todos os ouvidos até que, enorme, rebenta em raivoso fragor. E no silêncio brusco, o espaço é subitamente cinzento e morto.

***
Abre os olhos. A primeira coisa que vê é um pedaço de madeira branca. Olhando para adiante enxerga novas tábuas, todas iguais. E no meio de tudo, pendente, um esquisito animal que brilha, brilha e enfia as unhas compridas e cintilantes pelas suas pupilas, até atingir a nuca. É verdade que se abaixar as pálpebras, a aranha recolhe as unhas e reduz-se a uma nódoa vermelha e móvel. Mas é uma questão de honra. Quem deve se retirar é o monstro. Grita e aponta:

– Saia! Você é de ouro, mas saia!

A moça morena, de vestido claro, levanta-se e diz:

– Coitadinho. A luz está incomodando.

Torce o comutador. Ele se sente humilhado, profundamente humilhado. Então? Seria tão fácil explicar que era uma lâmpada... Só para feri-lo. Volta a cabeça para a parede e começa a chorar. A moça morena dá um gritinho:

– Mas não faça isso, meu bem!

Passa a mão pela sua testa, alisa-a devagar. Mão fresca, pequena, que vai deixando atrás de si um pedaço onde não fica mais pensamento. Tudo seria bom se as portas não batessem tanto. Ele diz:

– A Terra murchou, moça, murchou. Eu nem sabia que dentro dela tinha tanta luz...

– Mas eu já apaguei... Veja se dorme.

– Você apagou? – procura enxergá-la através do escuro. – Não, ela apagou-se por si mesma. Agora eu só queria saber isto: se ela pudesse ter escolhido, negar-se-ia a criar, somente para não morrer?

– Coitado... Você está mas é com muita febre. Se dormisse na certa melhorava.

– Depois ela se vingou. Porque os seres criados sentiam-se tão superiores, tão livres que imaginaram poder passar sem ela. Ela sempre se vinga.

A moça morena agora mistura seus dedos com os seus cabelos úmidos, revolve-lhe as ideias com movimentos suaves. Ele pega-lhe no braço, desfia seus dedos por aqueles dedos finos. A palma é macia. Junto da unha um pouco áspero.

Encosta a boca no seu dorso e vai passando-a por todos os caminhos, minuciosamente, os olhos muitos abertos na escuridão. A mão procura fugir. Ele a retém. Ela fica. O pulso. Fino e tenro, faz tic-tic-tic. É uma pombinha que ele aprisionou. A pombinha está assustada e seu coração faz tic-tic-tic.

– Este é um momento? Pergunta em voz bem alta. Não, já não é mais. E este? Já agora também não. Só se tem o momento que vem. O presente já é passado.

Estire os cadáveres dos momentos mortos em cima da cama. Cubra-os com um lençol alvo, ponha-os num caixão de menino. Eles morreram crianças ainda, sem pecado. Eu quero momentos adultos!... Moça, aproxime-se, eu quero lhe confiar um segredo: moça, que é que eu faço? Me ajude, que minha terra está murchando... Depois o que vai ser de minha luz?

O quarto está tão escuro. Onde a Virgem-Mãe que a tia meteu-lhe na mala, antes da partida? Onde está? Sente a princípio alguma coisa movendo-se junto dele. Então na sua boca enxuta dois lábios frescos pousam de leve, depois com mais firmeza. Agora seus olhos já não queimam. Agora suas têmporas deixam de latejar porque duas borboletas úmidas pairam sobre elas. Voam em seguida.
Ele se sente bem, com muito, muito sono...

– Moça...

Adormece.

Está agora no terraço do quarto de D. Marta, o que dá para o grande quintal. Levaram-no para lá, sentaram-no sobre uma espreguiçadeira de vime, um cobertor enrolado nos pés. Apesar de ter sido carregado como um bebê, cansou-se. Pensa que mesmo um incêndio não o faria levantar-se agora. D. Marta enxuga as mãos no avental.

– Então, seu moço, como vai de pernas? A pensão é minha, faço gosto em que o senhor more aqui. Mas, negócio de lado, eu lhe aconselharia a voltar para o Norte. Só a família mesmo pregaria o senhor do descanso, com hora certa de dormir e de comer... O doutor não gostou quando eu contei que o senhor ficava de luz acesa até de madrugada, lendo, escrevendo... Não é só por causa da eletricidade, mas, Deus nos valha, isso não é vida de gente...

Ele mal presta atenção. Não pode pensar muito, a cabeça fica oca de repente. Os olhos se afundam, cansados.

D. Marta pisca um olho.

– Minha afilhada veio fazer outra visitinha...

A moça entra. Ele olha-a. Ela se confunde, cora. Que houve, então? Ele sente nas mãos o toque de uma pele meio áspera. Na testa... Nos lábios... Olha-a com fixidez. Que aconteceu? Seu coração se acelera, pulsa com força. A moça sorri. Ficam calados e sentem-se bem.

Sua presença foi como uma suave sacudidela. Já agora a melancolia o abandona e, mais leve, tem prazer em se estirar sobre a cadeira. Estende as pernas, afasta o cobertor. Não faz mais frio e a cabeça não está tão vazia. É verdade que há também a fadiga que o prende ao assento, molemente, na mesma posição. Mas a ela abandona-se volutuosamente, observando com benevolência aquele seu desejo confuso de respirar muito, bem forte, de se descobrir ao sol, de pegar na mão da moça.

Há tanto tempo não se enxerga, nada se concede... É jovem, afinal, é jovem... Sorri, de pura alegria, quase infantil. Qualquer coisa suave brota do peito em ondas concêntricas e espalha-se por todo o corpo como vagas musicais. E o bom cansaço... Sorri para a moça, olha-a reconhecido, deseja-a levemente. Por que não? Uma aventura, sim... D. Marta tem razão. E seu corpo também reclama direitos...

– Você me fez antes alguma visita? – arrisca.

Ela diz que sim. Compreendem-se. Sorriem.

Ele respira mais profundamente, contente consigo mesmo. Pergunta animado:
– Você se lembra quando o homenzinho da última fila ergueu-se e disse: “Eu sei... e...”

Para assustado. O que está dizendo? Frases loucas que lhe escaparam, sem raízes... Então? Os dois ficam sérios. Ela, agora retraída, diz polidamente, com frieza:

– Não se assuste. O senhor teve muita febre, delirou... É natural que não se lembre do delírio... nem de nada mais.

Ele a encara desapontado.

– Ah, o delírio. Você desculpe, no fim a gente não sabe o que aconteceu mesmo e o que foi mentira...

Ela agora é uma estranha. Fracasso. Olha-a de trás, observa seu perfil vulgar, delicado.

Mas aquela moleza no corpo... O calor.

– Pois eu me lembro de tudo – diz de repente, resolvido a tentar a aventura de qualquer modo.

Ela se perturba, enrubesce de novo.

– Como...?

– Sim – diz mais calmo e subitamente quase com indiferença. – Lembro-me de tudo.

Ela sorri. Mal sabe, pensa ele, quanto significa-lhe este sorriso: uma ajuda para que ele entre por um caminho mais cômodo, em que se permita mais... D. Marta talvez tenha razão e, com a suavidade da convalescença, concorda com ela. Sim, pensa um pouco relutante, ser mais humano, despreocupar-se, viver. Corresponde ao olhar da moça.

No entanto, não experimenta alívio especial após a resolução de seguir uma vida mais fácil. Sente pelo contrário uma ligeira impaciência, uma vontade de se esgueirar como se o estivessem empurrando. Invoca um pensamento poderoso que o faça pousar sossegado sobre a ideia de se modificar: mais uma doença dessas e talvez fique inutilizado.

Continua porém inquieto, numa fadiga prévia pelo que se seguirá. Procura a paisagem, insatisfeito subitamente, sem saber por quê. O terraço sombreia-se. Onde está o sol? Tudo escureceu, faz frio. Há um momento em que sente a escuridão mesmo dentro de si, um vago desejo de se diluir, de desaparecer. Não deseja pensar, não pode pensar. Sobretudo, nada resolver por enquanto – adia, covarde. Ainda está doente.

O terraço dá para o arvoredo compacto. Na meia-luz, as árvores se balançam e gemem como velhinhas conformadas. Ah, ele se aprofundará na cadeira infinitamente, suas pernas se desmancharão, nada restará dele...

O sol reaparece. Sai de trás da nuvem vagarosamente e surge inteiro, poderoso, sangrento... Respinga brilho sobre o bosquezinho. E agora seu sussurro é o canto suavíssimo de uma flauta transparente, erguida para o céu...

Endireita-se sobre a cadeira, um pouco surpreendido, deslumbrado. Pensamentos alvoroçados se entrecruzam de repente em sua cabeça... Sim, por que não? Mesmo o fato de a moça morena... Todo o delírio surge-lhe ante os olhos? Como um quadro... Sim, sim... Anima-se. Mas que material poético encerra... “A Terra está tendo filhos.” E a dança dos seres sobre as feridas abertas? O calor volta-lhe ao corpo em leves ondas.

– Faça-me um favor – diz avidamente –, chame D. Marta...

Ela vem.

– Quer-me trazer um caderno que está em cima de minha mesa? E um lápis também...

– Mas... O senhor agora não pode trabalhar... Mal se levantou da cama... Está magro, pálido, parece que chuparam todo o sangue de dentro...

Ele para, de súbito pensativo. E principalmente se ela soubesse que esforço lhe custava escrever... Quando começava, todas as suas fibras eriçavam-se, irritadas e magníficas. E enquanto não cobria o papel com suas letras nervosas, enquanto não sentia que elas eram o seu prolongamento, não cessava, esgotando-se até o fim... “A Terra, os braços contraídos de dor...” Sim, sua cabeça já está dolorida, pesada. Mas poderia conter sua luz, para poupar-se?

Sorri um sorriso triste, um nada orgulhoso talvez, pedindo desculpas a D. Marta. À moça, pela aventura frustrada. A si mesmo, sobretudo.

– Não, a Terra não pode escolher – conclui ambiguamente. Mas depois se vinga.

D. Marta balança a cabeça. Vai buscar lápis e papel.
Clarice Lispector, "Todos os contos"

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