Fui mexer nuns velhos guardados e descobri o antigo projetor de slides, que julgara desativado. Bastou apertar a lâmpada e ele funcionou. Troquei de brinquedo e arrumei a cangalha num quarto vazio, onde a parede branca esperava as imagens descoloridas de um outro tempo, que vieram mansamente, trazendo farrapos do passado, subitamente iluminados –e tão verdadeiros, tão cruéis em sua verdade, em seu momento que não volta mais.
Aquele sujeito não me é estranho, mas, honestamente, não me lembrava dele. Está um pouco mais magro, o bigode é menos grosso, os cabelos mais fartos e escuros, mas o cachimbo é o mesmo, deve estar no meio dos outros lá na sala. Sim, sou eu mesmo, sentado na amurada de um rio, o tempo descoloriu a paisagem em volta, pode ser o Tibre ou o Vistula, o Sena ou o Tamisa, talvez seja mesmo o Danúbio, numa Viena que me deslumbrou.
Recordações de viagens, escombros de matérias para uma revista, e, no meio de tudo, os instantes de uma casa –a minha casa– no sofá de couro está deitada a mulher, o ângulo da foto mostra-lhe as pernas, grande parte das coxas. Por milagre –ou talvez castigo–, as cores ainda estão vivas e fortes. Devia ficar olhando para sempre aquela foto, tão real e minha –e já fantasma e alheia.
Não devia estar fuçando o passado, perdi a vontade de continuar. Guardei os slides, pensei em jogá-los fora, mas tive pena de mim mesmo e resolvi conservá-los no mais obscuro de mim mesmo. Lúcido e só, amaldiçoei o projetor, cúmplice da memória que ainda dói.
Carlos Heitor Cony
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