Porque sabemos – ou supomos – que o romance tem um centro, agimos, enquanto leitores, exatamente como o caçador que vê um indício em cada folha e cada galho quebrado e os examina com toda a atenção, à medida que avança pela paisagem. Vamos em frente, sentindo que cada nova palavra, objeto, personagem, protagonista, conversa, descrição, detalhe, todas as qualidades linguísticas e estilísticas do romance e as reviravoltas de sua narrativa sugerem e apontam para algo além do que é aparente. Essa convicção de que o romance tem um centro nos leva a crer que um detalhe aparentemente irrelevante pode ser significativo e que o sentido de tudo que está na superfície do romance pode ser muito diferente. O romance é uma narrativa aberta a sentimentos de culpa, paranoia e ansiedade. A sensação de profundidade que nos proporciona a leitura de um romance, a ilusão de que o livro nos imerge num universo tridimensional se devem à presença do centro – real ou imaginário.
O que basicamente separa o romance do poema épico, da novela medieval ou da tradicional narrativa de aventuras é a ideia de um centro. O romance apresenta personagens muito mais complexas que as da epopeia; focaliza gente comum e escava todos os aspectos da vida cotidiana. Mas deve essas qualidades e esses poderes à presença de um centro em algum lugar e ao fato de que o lemos com esse tipo de esperança. Quando nos revela detalhes mundanos da vida e nossas pequenas fantasias, hábitos cotidianos e objetos conhecidos, lemos com curiosidade – na verdade, com espanto –, porque sabemos que isso indica um significado mais profundo. Cada aspecto da paisagem geral, cada folha, cada flor é interessante e intrigante, porque esconde um significado oculto.
O romance pode se dirigir às pessoas da era moderna, na verdade a toda a humanidade, porque é uma ficção tridimensional. Pode falar de experiência pessoal, do conhecimento que adquirimos através dos sentidos e, ao mesmo tempo, pode oferecer um fragmento de conhecimento, uma intuição, uma pista sobre a coisa mais profunda – em outras palavras, sobre o centro, ou o que Tolstói chama de sentido da vida (ou como quer que o chamemos), esse local difícil de alcançar e que otimisticamente pensamos que existe. O sonho de alcançar o conhecimento mais profundo, mais precioso do mundo e da vida sem ter de enfrentar as dificuldades da filosofia ou as pressões sociais da religião – e de chegar lá com base em nossa própria experiência, usando nosso próprio intelecto – é um tipo de esperança muito igualitário, muito democrático.
Foi com grande intensidade e com essa esperança específica que li romances entre os 18 e os 30 anos. Cada romance que eu lia, sentado em minha sala em Istambul, proporcionava-me um universo tão rico em detalhes quanto qualquer enciclopédia ou museu, tão humano quanto minha própria existência e repleto de exigências, consolações e promessas que, em profundidade e extensão, só eram comparáveis às encontradas na filosofia e na religião. Eu lia romances como se estivesse sonhando, esquecendo tudo o mais, para adquirir conhecimento do mundo, para construir a mim mesmo e formar minha alma.
E. M. Forster diz, em Aspectos do Romance, que “o teste final de um romance será nosso afeto por ele”. Para mim, o valor de um romance está em seu poder de provocar uma busca por um centro que também podemos ingenuamente projetar no mundo. Para simplificar: a real medida desse valor deve ser a capacidade do romance de despertar a sensação de que a vida é, com efeito, exatamente assim. O romance deve se dirigir a nossas principais ideias sobre a vida e deve ser lido com a esperança de que fará isso.
Orhan Pamuk
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