Ano passado li Fahrenheit 451, do escritor norte-americano Ray Bradbury. O tema principal do romance publicado em 1953 é um melancólico mundo sem o objeto que tem sido o inseparável companheiro da evolução humana e um dos mais fascinantes objetos de desejo da humanidade, o livro. Um outro aspecto do romance é o acerto com que fala de fatos do futuro que não são de todo impossíveis e, pior, sessenta e sete anos depois de ter sido publicado o livro, já podem ter começado a acontecer.
Fahrenheit é a escala de medida de temperatura usada pelos norte-americanos, daí sua adoção por Ray Bradbury. Se o livro fosse escrito no Brasil, teria no título a escala Celsius, utilizada pela maioria dos países.
O título faz referência a uma altíssima temperatura, 451 graus Fahrenheit. Para se ter uma ideia, fazendo-se a conversão para Celsius, 451 graus Fahrenheit correspondem a pouco mais de 232 graus Celsius. Bem quente, aliás, extremamente quente. Quando nosso corpo atinge 39 ºC, nós sofremos bastante. Para se ter uma ideia dessa temperatura, a água e o leite, por exemplo, entram em estado de ebulição a 100 ºC, o que é menos da metade da temperatura indicada no título do romance. A 232 graus Celsius, derrete-se o estanho, se acrescentarmos pouco mais de 100 °C e chegarmos a 327 °C, veremos o chumbo ficar líquido. Quem já sofreu queimaduras com água ou leite sabe muito bem o que essa temperatura pode significar. Mas o que indicaria essa quentíssima temperatura de 451 graus Fahrenheit? Por que Ray Bradbury a adotou como título de seu romance. Simples. 451 graus Fahrenheit é a temperatura alcançada por um livro quando em combustão. A incineração de livros, cuja leitura no mundo criado por Bradbury é crime gravíssimo, é exatamente o assunto central desse romance.
Por que se queimam livros na sociedade criada por Ray Bradbury? Porque nela os livros, reveladores de verdades incômodas e instigadores da consciência crítica, são um antídoto contra a felicidade. É necessário destruir sem demora essa fonte nociva às aspirações humanas, pois as pessoas têm urgência de ser felizes mesmo ao preço de se tornar tapadas e manipuláveis. No mundo descrito em Fahrenheit 451 tudo é feito para que todos tenham acesso ao máximo de felicidade possível, sendo o livro eleito como o grande obstáculo, o grande inimigo da humanidade em sua busca de alegria plena. Então o mundo vai sendo libertado deles, até o ponto de a maioria das pessoas considerar criminosos aqueles que têm livros sob sua guarda. Uma vez descobertas, essas pessoas são sumariamente denunciadas. Há uma polícia secreta especializada em investigar a manutenção de bibliotecas. Quando descobertos, os livros são incinerados por um corpo policial especialmente preparado para a tarefa, e seus proprietários vão para a cadeia. Ironicamente, esse organismo policial age de forma muito semelhante aos bombeiros, só que, em vez de apagar incêndios, eles ateiam fogo a livros até sua completa destruição.
Há milênios os livros e seus antecessores têm causado desconforto. As causas são as mais diversas: ignorância, medo, ódio, intolerância e sede de poder, por exemplo. Desde séculos antes de Cristo eles vêm sendo objeto de perseguições e destruições em massa, muitas vezes ardendo em fogueiras sob as mais variadas justificativas. São tantos os exemplos que não dá para falar de todos, mas apenas para informar um pouco mais sobre isso, destaco as destruições feitas pelos russos, na década de 1920, quando queimaram livros de literatura considerada decadente do Ocidente, os inúmeros episódios que aconteceram na Alemanha de Hitler a partir do início da década de 1930 e, recentemente, as ocorridas no mundo árabe. Aqui perto, no Chile, em 1973, os livros também arderam nas fogueiras.
No Espírito Santo alguns livros sofreram desaprovações públicas. O romance A oferta e o altar, do escritor capixaba Renato Pacheco, teria ardido numa versão caseira de auto de fé em Conceição da Barra. Embora esse fato não seja totalmente confirmado, é sabido que ele causou incômodos na sociedade barrense da época. Aracelli, meu amor, livro de José Louzeiro com reportagem sobre o crime ocorrido em Vitória nos anos 1970 teve exemplares rasgados em praça pública, mais precisamente na Praça Costa Pereira, no Centro de Vitória, onde se realizava uma feira de livros. Mais recentemente, alguns leitores descontentes também atacaram o livro Kitty aos 22: divertimento, do escritor Reinaldo Santos Neves.
Às vezes a ficção pode ter paralelos assustadores com a realidade, e Fahrenheit 451 é recheado deles. Vou citar apenas um, bem significativo, em que nos encontramos numa fase ligeiramente anterior à abolição do livro: “A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?” A força dessas previsões não nos parecem familiares? Olhando bem, não parecem um pouco com eventos recentes bem comuns dos nossos dias?
Vem-me à lembrança o que, aliás com bastante convicção, me disse certa feita uma jovem na Biblioteca Pública. Ela havia ido para uma visita com sua turma e não parecia muito feliz ali. Acabou revelando o motivo: não gostava de ler. E arrematou: “Não gosto de ler porque tenho de pensar”. Pensar não é privilégio de quem lê, claro. Quem não gosta de ler está no seu direito. As pessoas podem passar muito bem sem o livro e não são melhores nem piores que ninguém porque leem ou não leem. Mas em certos casos – e o foi no meu – a leitura pode ser uma ferramenta extraordinária para a vida. Quem se interessa pelos livros logo percebe a nítida diferença. Ninguém pode ignorar o poder que o livro dá. Mas essa menina não queria saber. Ela se defendia, ainda: “Ah, esse negócio de ficar pensando é muito chato.”
É certo que Ray Bradbury, falecido em 2012, tenha vislumbrado alguns aspectos de seu livro já no tempo em que o escreveu, pois nos anos 1950, livre de uma guerra de grandes proporções, o mundo estava disposto a consumir tudo o que prometia uma vida mais prática e feliz, mas, tendo vivido ainda um bom tempo depois de publicar seu livro, fico imaginando o quanto ele computou ainda de acerto em sua previsão quanto a um mundo que se tornava tão menos humanizado diante de seus olhos.
Por que estou insistindo nesses fatos pavorosos? Simples. Porque numa coisa universal tem razão Ray Bradbury em Fahrenheit 451: o livro incomoda, o livro perturba, o livro muda as coisas do lugar e pode revolucionar a vida de quem o lê. O livro é esse doce, virulento e necessário manjar das consciências. Leon Tolstoi deixa bem claro: “Eu escrevo livros, por isso sei todo o mal que eles fazem.” Sempre que leio essa frase do grande escritor russo, torno-me mais consciente de que o bem que o livro faz é inversamente proporcional à inquietação que causa. Por isso a leitura de Fahrenheit 451 é tão necessária. E também porque nos dá o conhecimento prévio de uma possível tragédia que podemos evitar: um mundo sem livros, o que seria a derrocada final da humanidade, que tanto se beneficiou deles ao longo dos últimos milênios da sua evolução.
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