sexta-feira, julho 26

Carlota

Ainda deitada, notei pela janela que chovia lá fora. Como é que eu ia fazer? Ir de casa em casa, de guarda-chuva aberto, carregando a pesada bolsa de cosméticos, na esperança de que houvesse algumas quarentonas interessadas em cremes e outros produtos de beleza e que pudessem pagar à vista, em dinheiro? Chega de cheques pré-datados, nem tenho coragem de passar no banco, sei que os cheques que burramente aceitei na semana passada foram devolvidos.

Agora me lembro, acabou o café, e como posso levantar da cama sem tomar uma xícara grande de café? Preciso ir ao médico para ver que dor é essa que sinto no abdome, do lado esquerdo. O que a gente tem no lado esquerdo da barriga? Estômago? Mas não é estômago, é mais em cima, mais para o lado. O que tem aqui em cima, deste lado? Fígado, vesícula?

Moro sozinha. Sou solteirona. Minha mãe, que sofre de Alzheimer, vive com a minha irmã viúva, que tem recursos para cuidar dela e mora numa casa maior do que o cubículo onde resido. Aos domingos eu vou visitá-la e minha mãe nem me reconhece mais. Coitada dela. Pensando bem, coitada da minha irmã, que é quem sofre.

Levantei-me da cama e sem a xícara grande de café eu me sentia como um zumbi. Nem tive coragem de tomar banho. Para falar a verdade, antigamente eu tomava banho todos os dias, às vezes dois banhos por dia, um ao levantar e outro à noite, quando ia para a cama. Depois passei a tomar um banho apenas por dia, e ultimamente tomo banho dia sim, dia não, e já fiquei três dias sem tomar banho, lavando-me no bidê e limpando o sovaco com a esponja e passando desodorante. Não posso ir fedendo tocar a campainha da porta e dizer, madame, quer comprar cremes, perfumes e outros produtos de beleza?

Tive dificuldade para arrumar os produtos na mala. Como foi que esqueci de comprar o maldito café? Revistei os armários para ver se achava um pacote perdido, mas só tenho dois armários e foi fácil ver que não havia nenhum café em casa.

Moro num conjugado que nem cozinha tem, abro uma porta como se fosse um armário e lá está uma boca de gás alimentada por um botijão, onde tenho que fazer o meu café. No banheiro tem um chuveiro elétrico, a companhia do gás diz que o meu apartamento não tem a ventilação adequada para receber a instalação de gás. Já desisti de pedir.

Afinal consegui me vestir. Carregar um guarda-chuva e uma mala pesada cheia de potes e outras embalagens de vários tamanhos não é fácil. Quando cheguei na rua notei que não havia preparado o meu roteiro de visitas. O café estava fazendo falta, eu ainda nem acordara direito. Tive que voltar para casa e tirar a capa, colocar o guarda-chuva pingando no banheiro e sentar na cama, abrir o meu caderninho e escrever numa folha de papel o meu roteiro de visitas daquele dia. Depois de fazer isso, saí novamente.

Fiquei esperando o ônibus que me levaria para o setor da cidade que eu ia cobrir naquele dia. Moro num bairro perto da favela, o próprio bairro aos poucos está se favelizando, mas eu não posso pagar um aluguel mais caro e assim tenho que morar ali mesmo. Na minha vizinhança só tem um botequim, sujo e malfrequentado, eu evitava botar os pés nele. Mas naquele dia ou eu tomava um café ou caía dura no chão.

Entrei no botequim. Como sempre, havia um monte de homens mal-encarados, alguns tomando média com pão e manteiga, outros tomando cachaça, não sei como esses sujeitos conseguem tomar cachaça tão cedo.

Pedi uma xícara grande de café puro. Eu esperava que servissem um café meio nojento, como esses que dizem que é batizado com chicória para render mais, porém o café estava uma maravilha. Nunca pensei que um pé-sujo como aquele, em que o garçom usava um jaleco imundo, pudesse servir um café tão saboroso.

O prazer que senti apagou o cheiro ruim do recinto e me fez esquecer a presença dos cachaceiros e dos pilantras que tomavam a média com pão e manteiga. Senti vontade de pedir outra xícara, mas fiquei com medo de ela não ser tão gostosa e estragar o gostinho bom que a primeira tinha deixado na minha boca.

Paguei o café, peguei o guarda-chuva, mas quando procurei a mala ela havia sumido.

Perguntei ao garçom pela minha mala. Ele respondeu que não sabia do que se tratava, que eu não chegara com nenhuma mala. Ela chegou com uma mala, essa moça? Os cachaceiros e os tomadores de média com pão e manteiga disseram que eu não havia chegado com mala nenhuma.

Eu disse que ia dar queixa na polícia. Pode ir, respondeu o garçom, e voltou a servir os outros clientes. Eu ia perder o meu emprego e aquilo me deixou com tanta raiva que eu gritei, só tem ladrão neste país, alguém roubou a minha mala. Ladrões, gritei, ladrões.

O lado esquerdo da minha barriga doía. Comecei a chorar. Um sujeito que estava perto me disse, com um bafo forte de cachaça que entrava pelo meu nariz como se fosse uma broca de dentista, calma, madame, não se desespere, para tudo há um jeito.

Enojada, afastei-me do homem e saí correndo, subi as escadas do meu prédio, lá não tem elevador, e entrei, ainda chorando, no meu apartamento. Deixei o guarda-chuva pingando na sala e sentei na única poltrona que eu tinha.

Quando enxuguei os olhos vi que ao lado da porta, encostada na parede, estava a minha mala. Corri até lá, olhei, abri. Dentro estavam todos os produtos. Mas eu havia saído com a mala, largara ela no chão do café, eu tinha certeza. Havia acontecido um milagre ou eu estava ficando biruta?

A primeira coisa que eu ia fazer quando saísse era comprar dois quilos de café.
Rubem Fonseca, "Ela e Outras Mulheres"

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