domingo, julho 14

Olhos nos olhos

Estão vendo aquele homenzinho com um livro aberto diante dos olhos e um headphone amarelo na cabeça? Sou eu. Na mesa ao lado, um casal discute em voz baixa. Não reparam em mim. Uma pessoa com fones de ouvido, mergulhada na leitura, é, em termos sociais, quase inexistente. Pouco se distingue de uma planta num vaso.

A mulher deve ser uns vinte anos mais jovem que o marido. São ambos magros, delgados, flexíveis, com o ar leve e radiante de quem passou as últimas semanas ao sol, numa praia tropical. Turistas, com certeza. Falam em francês, com uma dicção tão perfeita, tão esplendidamente desenhada, que eu compreendo tudo. Sim, desliguei os fones para os ouvir melhor.

— Olhe para dentro de você mesmo — diz a mulher. — Antes de tomar qualquer decisão, olha bem para dentro de você.

O marido sorri:

— Se olhar para dentro de mim, muito para dentro de mim, estarei olhando para você.

A mulher solta uma gargalhada feliz. Segura-lhe o rosto, com carinho:

— Então olhe muito para dentro de mim, meu amor.

— Estou olhando...

Ficam assim os dois, um longo momento.

— Você se viu, se encontrou? — pergunta por fim a mulher, numa voz muito doce.

O francês caiu em si (ao menos foi o que assegurou). Reconheceu todos os seus erros. Prometeu que dali em diante não tomaria nenhuma decisão antes de afundar os olhos nos olhos da mulher. Vi-os partir, minutos mais tarde, mão na mão, alegres como dois adolescentes.

Voltei a ligar o som (“Astrakan Cafe”, do alaúdista tunisino Anouar Brahem), e terminei de beber o meu chá gelado. Fiquei pensando no turista francês e na grande arte de desmontar brigas conjugais. Anotei a frase dele, não tanto com a ideia de a usar numa futura crônica, mas, sobretudo, porque me ocorreu que, um dia, me poderia ser muito útil.

Brigas conjugais ocorrem pelos motivos mais fúteis. Também pelos mais sérios, é claro. Para quem as sofre são tão devastadoras quanto uma guerra civil. São uma guerra civil.

Nutro enorme admiração pelos psicólogos que medeiam conflitos conjugais. Ao longo das décadas (agora já conto o tempo em décadas) frequentei várias sessões de terapia de casal, com resultados muito diversos. Lembro-me de uma dessas sessões. A psicóloga pediu-nos, a mim e à minha namorada de então, que escrevêssemos uma lista daquilo que admirávamos um no outro. A seguir, teríamos de ler a lista em voz alta. Fui o primeiro. Antes de chegar ao final já eu chorava, já a minha namorada chorava, chorávamos ambos, abraçados um ao outro como náufragos. Quando recuperamos a serenidade vimos que também a psicóloga caíra num pranto vasto e silencioso:

— Desculpem, desculpem, isto não devia acontecer, fiquei muito emocionada…

A chave para a resolução de inúmeros conflitos, como os turistas franceses descobriram, passa por mergulhar nos olhos do outro. Olhar o outro nos olhos costuma ser uma experiência redentora. Aliás, as guerras foram-se tornando mais cruéis, mais desumanas, à medida que os homens aperfeiçoavam armas capaz de matar à distância: flechas, fuzis, aviões bombardeiros.

Vamos pois olhar os outros nos olhos. Pode ser que o mundo melhore um pouco.

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