terça-feira, julho 23

A avó, a cidade e o semáforo

Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Ndzima emitiu as maiores suspeitas:

- E vai ficar em casa de quem?

- Fico no hotel, avó.

- Hotel? Mas é casa de quem?

Explicar, como? Ainda assim, ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova desconfiança: uma casa de ninguém?

- Ou melhor, avó: é de quem paga - palavreei, para a tranquilizar.

Porém, só agravei - um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma casa como essa?

A mim me tinha cabido um prémio do Ministério. Eu tinha sido o melhor professor rural. E o prémio era visitar a grande cidade. Quando, em casa, anunciei a boa nova, a minha mais-velha não se impressionou com meu orgulho. E franziu a voz:

- E, lá, quem lhe faz o prato?

- Um cozinheiro, avó.

- Como se chama esse cozinheiro?

Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso, nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegurava a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anónima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de que nem o rosto se conhece.

- Cozinhar não é serviço, meu neto – disse ela. - Cozinhar é um modo de amar os outros.

Ainda tentei desviar-me, ganhar uma distracção. Mas as perguntas se somavam, sem fim.

- Lã, aquela gente tira água do poço?

- Ora, avô...

- Quero saber é se tiram todos do mesmo poço...

Poço, fogueira, esteira: o assunto pedia muita explicação. E divaguei, longo e lento. Que aquilo, lá, tudo era de outro fazer. Mas ela não arredou coração. Não ter família, lá na cidade, era coisa que não lhe cabia. A pessoa viaja é para ser esperado, do outro lado a mão de gente que é nossa, com nome e história. Como um laço que pede as duas pontas. Agora, eu dirigir-me para lugar incógnito onde se deslavavam os nomes! Para a avó, um país estrangeiro começa onde já não reconhecemos parente.

Mia Couto, "O fio das missangas"

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