terça-feira, julho 16

Vida em Nácori Grande

Sua própria vida, conforme explicava, havia sido um aprendizado constante. Não aprendeu a ler nem a escrever até os vinte anos, para dar um número redondo. Nascera em Nácori Grande e não pôde ir à escola como uma menina normal porque sua mãe era cega, e ela precisou cuidar dela. De seus irmãos, dos quais guardava uma lembrança vaga e carinhosa, não sabia nada. O vendaval da vida foi levando eles para os quatro cantos do México e provavelmente já estavam debaixo da terra. Sua infância, apesar dos apertos e das desventuras próprias de uma família camponesa, foi feliz. Adorava o campo, dizia, se bem que agora me incomode um pouco porque me desacostumei com os bichos.


A vida em Nácori Grande, embora muitos custem a acreditar, podia ser às vezes muito intensa. Cuidar da mãe cega podia ser divertido. Cuidar das galinhas podia ser divertido. Lavar roupa podia ser divertido. Cozinhar podia ser divertido. A única coisa que lamentava era não ter ido à escola. Depois se mudaram, por causas que não vinham ao caso, para Villa Pesqueira, onde sua mãe morreu e ela, oito meses depois do falecimento, se casou com um homem a quem quase não conhecia, uma pessoa trabalhadora, honrada, respeitosa com todo o mundo, um homem bem mais velho do que ela, diga-se de passagem, que na hora de ir para o altar tinha trinta e oito anos e ela só dezessete, quer dizer, um homem vinte e um anos mais velho!, que trabalhava com compra e venda de animais, sobretudo cabras e ovelhas, se bem que de vez em quando também vendia ou comprava gado bovino e até suíno, e que por essas circunstâncias de trabalho tinha de viajar constantemente pelas cidades da região, como San José de Batuc, San Pedro de la Cueva, Huépari, Tepache, Lampazos, Divisaderos, Nácori Chico, El Chorro e Napopa, por estradinhas de terra ou trilhas de animais e por atalhos que margeavam aquelas montanhas intrincadas. Seus negócios não iam mal. Às vezes ela o acompanhava em alguma das suas viagens, não muitas, porque era malvisto um comerciante de gado viajar com uma mulher, ainda mais se fosse sua própria mulher, mas em algumas o acompanhou. Era uma oportunidade única de ver o mundo. Para ver outras paisagens que, embora pareçam a mesma, se você olhasse bem, com os olhos bem abertos, se revelavam no fim das contas muito diferentes das paisagens de Villa Pesqueira. A cada cem metros o mundo muda, dizia Florita Almada. Isso de que há lugares iguais a outros é mentira. O mundo é como um tremor.

Claro, ela gostaria de ter tido filhos, mas a natureza (a natureza em geral ou a natureza do seu marido, dizia rindo) privou-a dessa responsabilidade. O tempo que teria dedicado ao bebê empregou em estudar. Quem a ensinou a ler? As crianças me ensinaram, afirmava Florita Almada, não existe melhor professor do que elas. As crianças, com seus abecedários, que iam à sua casa pedir que lhes desse pinole. A vida é assim, justo quando acreditava que se desvaneciam para sempre as possibilidades de estudar ou voltar aos estudos (vã esperança, em Villa Pesqueira achava-se que Escola Noturna era o nome de um bordel nos arredores de San José de Pimas), aprendeu, sem maiores esforços, a ler e a escrever. A partir desse momento leu tudo o que lhe caía nas mãos. Num caderno anotou as impressões e pensamentos que suas leituras lhe produziram. Leu revistas e jornais velhos, leu programas políticos, que de quando em quando jovens de bigode vindos em caminhonetes entregavam no vilarejo, e jornais recentes, leu os poucos livros que pôde encontrar, e seu marido, depois de cada ausência traficando com animais nos lugares vizinhos, se acostumou a lhe trazer livros que às vezes comprava não por unidade mas por peso. Cinco quilos de livros. Dez quilos. Uma vez chegou com vinte quilos. Ela não deixou de ler um só e de todos, sem exceção, extraiu algum ensinamento. Às vezes lia revistas que chegavam da Cidade do México, às vezes lia livros de história, às vezes lia livros de religião, às vezes lia livros licenciosos que a faziam corar, sozinha, sentada na mesa, as páginas iluminadas por um abajur cuja luz parecia bailar ou adotar formas demoníacas, às vezes lia livros técnicos sobre o cultivo de vinhedos ou sobre a construção de casas pré-fabricadas, às vezes lia histórias de terror e de assombração, qualquer tipo de leitura que a divina providência pusesse ao alcance da sua mão, e com todos eles aprendeu alguma coisa, às vezes muito pouco, mas alguma coisa ficava, como uma pepita de ouro numa montanha de lixo, ou para afinar a metáfora, dizia Florita, como uma boneca perdida e reencontrada numa montanha de lixo desconhecida.

Enfim, ela não era uma pessoa instruída, em todo caso não tinha o que se chama de educação clássica, pelo que se desculpava, mas tampouco se envergonhava de ser o que era, pois o que Deus tira de um lado a Virgem repõe do outro, e quando isso acontece a gente tem de estar em paz com o mundo. Assim passaram os anos.

Seu marido, por essas coisas misteriosas que alguns chamam de simetria, um dia ficou cego. Por sorte ela já tinha experiência em cuidado com os deficientes visuais e os últimos anos do comerciante foram sossegados, pois sua mulher cuidou dele com eficiência e carinho. Depois ficou sozinha, e por então já havia feito quarenta e quatro anos. Não se casou de novo, não porque faltassem pretendentes, mas porque tomou gosto pela solidão. O que fez foi comprar um revólver calibre 38, porque a escopeta que seu marido lhe deixou de herança lhe pareceu pouco manejável, e dar, momentaneamente, seguimento aos negócios de compra e venda de animais. Mas o problema, explicava, é que para comprar e sobretudo para vender animais era necessária certa sensibilidade, certa educação, certa propensão à cegueira que ela de modo algum possuía.

Viajar com os animais pelas trilhas dos morros era muito bonito, praceá-los no mercado ou no matadouro era um horror. De modo que em pouco tempo abandonou o negócio e continuou viajando, em companhia do cachorro de seu falecido marido, do seu revólver e às vezes dos seus animais, que começaram a envelhecer com ela, mas desta vez fazia isso como uma curandeira transumante, das tantas que há no bendito estado de Sonora, e durante as viagens procurava ervas ou escrevia pensamentos enquanto os animais pastavam, como fazia Benito Juárez quando era um menino pastor, ai, Benito Juárez, que grande homem, que correto, que íntegro, mas também que menino mais encantador, desse pedaço da sua vida se falava pouco, em parte porque pouco se sabia, em parte porque os mexicanos sabem que quando falam de crianças costumam dizer besteiras ou cafonices.
Roberto Bolaño, "2666"

Nenhum comentário:

Postar um comentário