Aquele ali, deitado com as mãos cruzadas sobre o peito, foi meu amigo de muitos anos. Dos melhores anos: os da faculdade e um tanto mais adiante, quando as perspectivas eram maiores que as obrigações. Vivemos coisas juntos: bares, festas, viagens ao Rio (ele era do Rio), idas a shows, à praia, ao Maracanã. Até rodar o carro na serra de Ubatuba e bater no guard-rail a gente fez junto.
Mas a vida, você sabe: um se casou, depois o outro, vieram os filhos, o trabalho, os compromissos, ele foi morar em outra cidade, depois noutra, e passamos a nos ver pouco. Nos últimos dez anos, bem pouco.
Então, por que estou aqui? Sentado sozinho num canto do velório, deslocado, um ou outro dos presentes me conhece só de vista. Me levanto de vez em quando para espichar as pernas, ir tomar um café, checar as mensagens no celular. Os amigos daquele tempo não vieram. De novo, então: por que estou aqui?
Porque a notícia de sua morte me tocou profundamente. Precisava vir. Peguei o carro, dirigi 140 quilômetros e aqui estou: para mostrar o quanto gostava do amigo, o quanto ele fez parte da minha vida. Mas não há ninguém a quem eu possa dizer isso.
Olho em volta. Não há poesia alguma nas duas velas que queimam devagar nem nas coroas de flores. Elas não estão aqui pela poesia, mas por um motivo prático que eu é que não vou ser cruel de explicar aqui. A vida tem dessas impiedades. Mas também, que mania essa de querer pôr poesia em tudo.
Contemplo meu amigo deitado, sua pele empalideceu mais um pouco, e os dois filhos, desolados, passam a maior parte do tempo nos braços um do outro.
Foram chamar o padre. Ele veio, puxou um livrinho do bolso da batina, folheou, deu uma longa espiada no pessoal, molhou os dedos com a língua, folheou de novo as páginas e leu uma oração bem mal lida, com pausas onde não havia e alguns gaguejos. Parece que estava ali apenas para cumprir uma obrigação burocrática, como um dentista que prepara os instrumentos para tratar o paciente.
Um dos amigos daquele tempo chega. Já posso conversar com alguém, lembrar das passagens boas, comentar que o amigo já não vinha bem e dar as risadas que fazem parte de todo velório. Mas nada dizemos. As palavras se recusam. Ficamos silentes olhando o corpo do amigo inerte, sem cor, esquisito. Quase não o reconhecemos assim. É o primeiro da turma que vemos num caixão. Muito estranho: parece um ator deslocado num filme onde não deveria atuar. Outro amigo, ainda mais próximo, morreu há alguns anos de covid, quando os velórios estavam proibidos, e não pudemos nos despedir. Esse, portanto, é o primeiro de nós que velamos.
Ouve-se um zumzum na sala. Ele anuncia a chegada dos funcionários do cemitério. Chegam respeitosos, fecham o caixão, o colocam num carrinho desses de golfe e se dirigem ao local do enterro. As pessoas seguem o carro, só se ouvem os passos no caminho de cascalhos. Resolvo diminuir a passada, disfarçando, até me desvencilhar da procissão, sair de fininho e voltar para o carro, minha cidade, minha vida.
Aquele ali, deitado com as mãos cruzadas sobre o peito, era meu amigo. Um velho e bom amigo. Por isso vim.
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