Gonçalo ultrapassava-o agora, numa rajada de insânia. Levava o lenço de seda verde amarrado ao pescoço, esticadas as pontas para trás, pelo vento.
Não. Não queria consentir. Tinha de reconquistar a frente. Mais depressa, ainda mais depressa! Escuros rumores, inimigos, golpeavam-no como setas. Uma lua de pedra no céu, a ameaçá-lo. E o outro a distanciar-se. Acelerou. Viesse a morte, que viesse! A estrada devorada estremecia, vibrava como uma cobra pisada. Os seixos pulavam e faiscavam adiante do guiador. Já não saberia parar. Já lhe parecia impossível parar.
Distante, perdida, quase esquecida, toda a vida anterior. Só ele no meio da noite e dentro daquela euforia dolorosa, terrível, sobre a “vespa” veloz, gelada pelo hálito da morte. Mais depressa, ainda mais depressa!
De repente, aquele estrondo. E, lá adiante, uma imagem minúscula, absurda, tão nítida, tão sem sentido, como num documentário de cinema: a “vespa” pequenina saindo da estrada, guinando, chocando com uma árvore, arremessada ao ar, e aquele boneco de feltro, desarticulado, voando até cair inerte sobre as ramas cloróticas, numa poça de luz.
Começou a travar, suavemente. Quase não podia dar um passo, ao largar a “vespa”. Tinha as pernas hirtas, como se houvessem sido prensadas entre blocos de ferro.
Olhou. E logo voltou a cara. Nem uma esperança sequer de lhe pedir perdão! Gonçalo devia ter caído, com certeza, de cabeça para baixo. Estava todo torcido, o pescoço à banda .
Ricardo venceu finalmente o pavor que o lacerava e curvou-se sobre aquela caricatura morta. Voltou-o com jeitinho . Não havia uma só mancha de sangue no rosto duro, muito branco. Encostou-lhe o ouvido ao peito. Nada. Já não respirava.
Urbano Tavares Rodrigues
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